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A crónica sobre um “coração que tem o suficiente para abraçar o mundo inteiro”

Foto: O País

Duas horas antes do seu concerto iniciar, Selma Uamusse confessou estar nervosa. Habituada a pisar grandes palcos e de vários cantos do mundo, em casa parece que as coisas ganham outro sentido, outra dimensão. Ainda assim, na celebração do Dia da Europa, iniciativa da União Europeia e do Franco-Moçambicano, a natural não tremeu. Paciente e natural, a cantora  apresentou ao público maputense as músicas do seu segundo álbum, Liwoningo, afinal nome da filha do seu velho amigo: Cheny Wa Gune. Com o timbileiro, Selma partilhou o palco em alguns temas, mas a crónica não deve começar por aqui…

Quando o som dos instrumentos começou a soar por cada milímetro da Sala Grande do Franco, este sábado, Selma Uamuse apresentou-se em palco dançando o tema “Mamã”, composição de Deltino Guerreiro por si interpretada. Nesse instante, a artista parecia uma “ilustre desconhecida”, pois, ao contrário do que poderia acontecer, quase ninguém a acompanhou no canto ou com vigorosos aplausos. Entre sussurros, os espectadores perguntavam uns aos outros: E agora, o que vem aí? Bem, Selma Uamusse não ouviu essa pergunta. Talvez, por isso, apenas dedicou-se a fazer o que para a artista parece fácil: conquistar a atenção e o respeito dos que, mesmo sem entender as letras das composições, gradualmente, entregaram-se a uma vibe absolutamente convincente.

Partindo de Portugal, onde vive desde 1988, Selma Uamusse aterrou em Maputo para mostrar a sua conexão com a Pérola do Índico, com as tradições, com o quotidiano, com a sua gente e com os artistas que vivem cá e lá fora. Também por isso, logo no início da apresentação do seu repertório, cantou “No guns” com o já apresentado Cheny Wa Gune, um tema para pensar a paz, a harmonia social e a tão difundida unidade nacional. Aí a Sala Grande começou a aquecer. A cantora ia na sua segunda música e os assentos já incomodavam. Como era possível alguém estar sentado com uma 7 de Abril ali a cantar e a dançar rigorosamente bem, calçando um salto alto com tantos quilómetros percorridos? Não, não era possível e a artista não permitiu.

Firme no seu registo performativo desconcertante, Selma Uamusse foi subindo de intensidade na actuação… A uma velocidade de cruzeiro. Aos passageiros, só lhes restava desapertar os cintos de segurança, levantar e fingirem, com movimentos, que um dia souberam dançar. Do palco, a autora dos álbuns Mati e Liwoningo não deve ter reparado nos vários “paus de vassoura” que a tentavam imitar ou corresponder às suas provocações… Crianças, jovens, mulheres, homens, pretos, brancos, moçambicanos, suecos, portugueses, franceses e etc., de repente, viram-se envolvidos numas coreografias originais, mas que hoje seriam incapazes de repetir, não fossem os movimentos confusos e improvisados.

Neste regresso a Moçambique, Selma Uamusse quis cantar para e com toda a gente. Deve ser por essa razão que, não podendo estar com uma das filhas no palco, primeiro, chamou a Liwoningo para a acompanhar no tema “Hoyo-Hoyo”. A menina que não parece ser bailarina ficou ali meio contida no palco, entre sorrisos, abraços e a emoção de dançar ao som da timbila do pai. A essa altura, os dois corredores de acesso da Sala Grande já não se viam. Todos em todo o lado. Como que hipnotizados, o público percebeu as particularidades que tornam a música universal e a arte performativa, às vezes, inefável. Foi um misto de emoções e sentimentos ver uma irmã e uma filha de regresso a casa, explorando ritmos tradicionais e imaginários locais. De Portugal, Selma Uamusse tem o sotaque e tantas outras coisas, mas, quando o assunto é música, os seus processos criativos assentam em matrizes culturais moçambicanas, do Norte ao Sul, do Sul ao Norte. Há um Moçambique efervescente e subtil em Selma Uamusse, um Moçambique plural com a capacidade de se afirmar artisticamente no estrangeiro, um Moçambique envolvente, comovente e dinâmico.

Ao interpretar “Ngono utana”, aquilo já não era saltar. Às alturas, a cantora lá ia buscar uma energia inigualável. Selma Uamusse parece ter o dobro dos pulmões de um ser humano. Talvez, depois de Azagaia, é a artista moçambicana que melhor testa a resistência do palco no qual actua. Viu-se isso no Franco, uma cantora incapaz de estar quieta, mas, simultaneamente, boa na serenidade. Por exemplo, com “Mati” a coisa foi mais pausada. Esse tema que há alguns anos mereceu uma versão com Sara Tavares, desta vez, teve outra versão com Milton Gulli, esse monstro da música que também voltou a casa na celebração do Dia da Europa.

Com “Mati”, Selma faz as pessoas pensar nas coisas essenciais da vida muitas vezes ignoradas, nas coisas e nas pessoas que nos alimentam a existência. Logo, em jeito de agradecimento a uma certa pessoa, a cantora com o “coração que tem o suficiente para abraçar o mundo inteiro”, conforme disse, desceu do palco cantando, passou entre os espectadores, tocou-os, deixou-se fotografar e, de assento em assento, foi procurar a mãe até encontra-la lá no meio de tanta gente. Julieta Massimbe levantou-se orgulhosa. Não precisou dizer É minha filha! Selma Uamusse tratou de a apresentar para quem não sabia e aí alguns telemóveis atrasaram-se a registar o momento do abraço. Os mais atentos, sim, captaram essa celebração do amor às mães.

Numa noite a passar célere, Selma Uamusse convidou Stewart Sukuma para juntos interpretarem um tema. Foi um cruzamento de gerações, entre a exaltação do afecto e da saudade. Uma vez mais, Stewart, esse menino de apenas 60 anos de idade, deixou ficar a impressão de que os anos, para si, não mudam nada em termos físicos. Depois, chegou a vez de Lenna Bahule também fazer um duo com Selma. Isso não levaria muito tempo. O concerto inebriante já estava a terminar. Selma Uamusse agradeceu pelo calor, pelos kulunguwanas e, com o coração cheio de liwoningo, recolheu ao backstage, deixando, para mim, a crónica de uma noite bem anunciada.

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