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A crónica de um tal Radjha Ali em Saint-Pierre

Desde que a edição 2022 do Mercado de Música do Oceano Índico (IOMMa) iniciou, segunda-feira, as bandas que encerram os concertos diários têm sido aquelas que, de certa forma, causam mais impacto no público. Seguindo este raciocínio, a grande expectativa do terceiro dia do evento estava virada para a banda sul-africana Morena Leraba, que, na véspera, teve um jantar agradabilíssimo com parte da delegação moçambicana no restaurante La Detente, na Cidade de Saint-Pierre, na Ilha Reunião.

A banda Morena Leraba é constituída por um vocalista do Lesotho e dois instrumentistas da África do Sul. O vocalista conhece boas praias, cidades e vários cantores moçambicanos. Mas não fazia ideia do ilustre desconhecido Radjha Ali.

Na verdade, desde que o IOMMa começou, no Le Kerverguen, um espaço localizado a uns 500 metros do mar, Radjha Ali e a sua banda passavam despercebido dos músicos, produtores e directores de festivais de vários países banhados pelo Oceano Índico – e isso é péssimo porque o IOMMa é um mercado de música, em que lá estão vários intervenientes da indústria musical interessados em contratar bandas para festivais. Por isso o evento é aberto a convidados muito específicos, e não a toda gente.

A indiferença também se verificava no hotel onde os artistas moçambicanos estavam hospedados. Portanto, à partida, Moçambique era um out sider em termos de proposta musical e quase não se ouvia ninguém expectante em ouvir Radjha Ali, com a excepção de alguns amigos de Paulo Chibanga, Paulo Borges e Ivan Laranjeira, que naquele território francês, parecem umas estrelas de cinema. Por onde passam, abraços e networking. Então, Radjha Ali e Amade e Nando Morte (percussionistas), Sílvio (guitarrista) e Sidney (baixo), durante dois dias, não conseguiram atenção de ninguém. As pessoas passavam por eles sem interesse nenhum. Até podiam parecer que estavam ali de favor. No entanto, esta quarta-feira, 1 de Junho de 2022, Dia Internacional da Criança, as coisas mudaram radicalmente e a palavra Mozambique e mozambican tornaram-se uma espécie de ouro, Major! (os mais novos não irão entender esta de ouro, Major! Quem lhes manda nascer na época das galinhas que são frangos ou jovens?). Tudo isso porque um moçambicano de estatura baixa, umas rastas longas, corpo arredondado, que poderia ser feio, se não gostássemos dele, pegou no microfone e zás…. representou com mestria cerca de 30 milhões de moçambicanos em 30 minutos de espectáculo. E, por isso, a noite de alguns moçambicanos presentes no IOMMa, mesmo sem terem pisado o palco, mudaria no Le Keverguen a 360º graus.

Radjha Ali apresentou-se ao Le Keverguen cantando “Malaxi”. Enquanto subia ao palco, a delegação moçambicana recebeu o cantor como uma estrela pop, alternando, aos gritos, o seu nome e do país. Até aqui, no IOMMa ouviu-se o nome Moçambique como nunca aconteceu com nenhum outro país. As pessoas de outras nacionalidades aproximaram-se e encheram a sala. À medida que Radjha e a sua banda faziam as coisas acontecer, em frente ao palco um grupo de moçambicanos apoiava a actuação ao estilo de uma claque de futebol. Os moçambicanos dançaram, fizeram um comboio de dança passando por toda gente, fizeram um círculo improvisando passos e a eles juntou-se, por exemplo, uma brasileira que vive há décadas na Ilha Reunião. Os moçambicanos cantavam Radjha, ora com palmas, ora aos saltos. Os franceses, os malgaxes, os maurícios ou os tanzanianos não compreendiam o que se estava a passar. O Le Kerveguen transformou-se numa cidade moçambicana e o público ficou hipnotizado, prendido à sonoridade de um cantor que reuniu consensos na Ilha Reunião. Vejam só: reunir consensos na Ilha Reunião.

A performance de Radjha Ali e a banda foi brutal. O cantor atirou-se ao chão quando tinha de ser. Encarnou a dor das vítimas de Cabo Delgado e, quando ficou deitado no palco, como se tivesse desmaiado, a sala ficou quieta. De repente fria. Nem um suspiro se ouvia e toda a gente queria compreender o que estava a suceder. O cantor tornou-se uma personagem a representar. Radjha interpretou “Ekoma tsowani”, “Grito de socorro” e “Mwanamwane”. A essa altura, já ninguém consegui respirar porque, nesse movimento em que o ar entra e sai dos pulmões o expectador poderia perder um eterno instante da inesquecível actuação. Radjha prendeu o tempo e fez o que quis com as emoções das pessoas, como se estivesse a tocar no Gil Vicente ou no Franco-Moçambicano, como se estivesse a tocar para a sua gente, enérgico, conciliando a doce voz com ritmos do Norte do país.

Ao fim de quatro músicas, Radjha Ali já não era nenhum ilustre desconhecido. Os seus compatriotas posicionados na primeira fila, mas que às vezes faziam comboios de dança por toda sala, claro, puxando para a fila pessoas de outras nacionalidades, também não. E o mais marcante: o desempenho vocal e rítmico foi sempre ascendente. Então, quando a música “Mamã” ecoou aos ouvidos do público, pareceu que aquele seria o último espectáculo do mundo. Se algum dia Saint-Pierre viu uma actuação de um cantor tão sincronizada ao apoio do público do seu país, que, mesmo estando no estrangeiro parecia estar em casa, só pode ter sido esta quarta-feira à noite, quando Radjha esteve em palco, quando Radjha tocou “Nthupi”, quando Radjha fez as pessoas saírem do chão e flutuar pelo Índico acima. Uma dessas pessoas foi a vereadora da cultura de Saint-Pierre. Encantada, dançou e ficou toda estupefacta com a performance daquele génio que queria alcançar o céu numa única actuacção.

Do lado de Moçambique, a Vereadora da Cultura, Isabel Macie, também esteve presente, acompanhada por outros integrantes da delegação moçambicana na Ilha Reunião. Malta Eduardo Zaqueu, Rodrigo Sala, Paulo Chibanga, Ivan Laranjeira e Leonel Matusse Jr. Impressionada como ficou, a vereadora deve ter pensado em fazer um way para aquele puto não pagar mais impostos, no regresso a Maputo. Mas não pensou, que nem sequer teve tempo para isso. Ela também aproveitou cada momento do espectáculo como se a música ali também estivesse a funcionar como diplomacia para futuros projectos comuns entre Moçambique e Ilha Reunião.

Então, outras pessoas que sabem falar português revelaram-se. Aproximaram-se aos moçambicanos para tentar puxar conversa. Não foi possível durante o show. Mas, logo que terminou o espectaculo, um cidadão da Seychelles, Patrice Victor, mais ou menos 55 anos de idade, disse o seguinte: – Estou orgulhoso, porque os meus antepassados são de Moçambique! Na verdade, isto pode ser repetido mil vezes porque é verdade, nenhum moçambicano foi visto da mesma forma depois da actuação de Radjha Ali.

No bar, quando os moçambicanos pretendiam comprar cerveja, as pessoas ofereciam-se para pagar e pagavam com satisfação. Se à pergunta where’re you come from a resposta fosse Mozambique, então, lá iam umas duas, três e tantas beers mahala. Ou seja, quando Radjha Ali e a banda recolheram aos bastidores, passou a ser estrela todo aquele que fosse moçambicano ou que estivesse a falar português. E o que dizer das pitas, padrão internacional? Ui… Nunca se viu tanta Brigitte Bardot gira de uma só vez. As pretas, mulatas, brancas, canecas, amarelas, vermelhas, verdes e até azuis lá colavam-se aos mozambicans na esperança de serem levadas ao hotel mais próximo. Era nice to meet you para aqui, nice to meet you para acolá. Bastaria uma palavra e cada uma daquelas beldades mudaria de quarto naquela noite. Mas um moçambicano é manigue sério: sabe como se comportar quando tem uma 7 Abril no seu coração.

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