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A corrupção que custa muitas vidas humanas

Foto: O País

Há corrupção na inspecção técnica de viaturas. Carros em péssimo estado mecânico são aprovados mediante 500 Meticais de suborno. A intervenção da Polícia de Trânsito é limitada pelo facto de não ter como provar que o carro não reúne condições para se fazer à estrada. Já o Governo desconhece a existência do problema, mas promete que será implacável se tomar conhecimento de tais casos.

O “O País” fez uma investigação exclusiva sobre a corrupção na inspecção de viaturas. Foram mais de 10 dias intensos dedicados à compreensão de um fenómeno que já é tido como normal, pelo menos na classe de quem conduz ou é proprietário de um carro.

Concluiu-se que carros em péssimo estado mecânico são aprovados e têm livre circulação pelas estradas e são uma espécie de bomba-relógio, que, a qualquer momento, pode explodir e matar muitas pessoas.

E isso acontece porque os subornos estão à frente e interferem na inspecção técnica de uma máquina que transporta vidas.

Nesta reportagem, escolhemos um carro que, a olho nu, dá para perceber que tem todos os problemas mecânicos possíveis de se imaginar que uma viatura possa ter, e o proprietário citou alguns.

“Os problemas do carro têm a ver com a parte de travões traseiros e a direcção, que escapava”, indicou o condutor, na condição de anonimato.

Os problemas que o condutor citou foram detectados na última inspecção feita em 2020. Depois disso, o carro foi arrumado e mais deficiências mecânicas foram surgindo. O proprietário da viatura sequer sabe quantas e quais são.

“Recomendaram que rectificasse todos os problemas e meter algumas peças novas, e agora estou a tentar recuperar. Significa que tenho que voltar à inspecção. O carro ficou muito tempo parado. Como vês, ainda estava em preparação”, disse o condutor.

E a preparação não foi concluída, mas o carro tem de se fazer à rua e transportar passageiros. “Bom, por causa da fome, acabamos por arriscar. Carregamos passageiros, mesmo sabendo que o carro não está em condições”, reconheceu o risco de colocar o carro com avarias a transportar passageiros.

É ainda mais arriscado colocar o carro na estrada sem saber do seu estado mecânico e sem ficha de inspecção, um documento obrigatório exigido pela Polícia de Trânsito.

Na companhia da nossa equipa, o condutor do carro que é objecto da nossa reportagem foi ao Centro de Inspecção Técnica de Veículos e algo inusitado aconteceu pelo caminho.

A viatura teve uma avaria. Não arrancava. Isso aconteceu a menos de 500 metros do local onde o carro seria inspeccionado. Tinha de se fazer alguma coisa para lá chegar, e a pergunta que não quer calaria é: será que vai ser aprovado na inspecção?

O condutor não sabia qual era o problema do carro. Tentou um pouco de tudo para pô-lo a funcionar.

Recorreu-se à água, mexeu-se num pouco de tudo no motor, na bateria e até se deu um empurrãozinho, mas nada serviu para pôr o carro a andar.

Só depois de incontáveis tentativas, que duraram cerca de hora e meia, é que se colocou a viatura a funcionar.

E a viagem seguiu rumo à inspecção. No Centro de Inspecção, o transporte semicolectivo ficou na fila para ser inspeccionado. Antes disso, procedeu-se ao pagamento normal no caixa e foi necessário mexer alguns pauzinhos para que o carro não fosse reprovado.

Telefonou-se a alguém, por sinal, um técnico da inspecção, para facilitar o processo. Atendeu, pediu as características do carro e, de seguida, foi ao nosso encontro. É ele quem vai receber o dinheiro do suborno para garantir que o carro não seja reprovado na inspecção.

Depois de pedir as características do carro, ele aproxima-se para fazer um processo que parece normal, pelo menos aos olhos dos demais. A viatura passa pelo primeiro processo, no qual são detectadas algumas anomalias. O técnico desenvolve uma conversa com o condutor sobre os problemas detectados.

– Técnico da Inspecção: Porque é que não afinaram as válvulas e a cabeça?

– Condutor: Não são válvulas. Este carro não estava a lubrificar bem. Troquei bomba. Então, quando troquei a bomba, já havia “comido” um pouco na cambota. Então, tenho que “jobar” [trabalhar] por uma semana, tirar a cambota, rectificar e meter novas capas.

Para continuar com os passos subsequentes e mais delicados da inspecção da viatura, recorreu-se ao suborno. O técnico da inspecção aproxima-se do condutor e faz a negociação do valor do suborno.

O motorista fez um sinal de quanto é necessário para que a viatura seja aprovada na inspecção. Levantou a mão e mostrou os cinco dedos – 500 Meticais.

Para não levantar suspeitas, o dinheiro é colocado no livrete do carro que, logo a seguir, vai parar nas mãos do técnico da inspecção. Depois de levar o livrete com o dinheiro, o técnico da inspecção ainda pergunta:

– Técnico da Inspecção: É isso mesmo que pedi?

– Condutor: Sim, sim.

Pago o suborno, o carro continua a ser inspeccionado. Nesse processo, a olho nu, era possível ver o carro a verter água, óleo, além dos demais problemas que só as máquinas detectam.

E as deficiências detectadas na inspecção são agrupadas em três tipos, de acordo com o Regulamento Inspecção Técnica de Viaturas, artigo 7:

As deficiências são classificadas do modo seguinte:

  1. a) Do Tipo I: Aquelas que não afectam gravemente as condições de funcionamento e segurança do veículo;
  2. b) Do Tipo II: Aquelas que afectam as condições de funcionamento do veículo ou põem em dúvida a sua identificação, mas não implicam a sua paralisação;
  3. c) Do Tipo III: Aquelas que afectam gravemente as condições de segurança do veículo.

Terminada a inspecção, o carro é aprovado. O técnico fez constar da ficha que só foram descobertas 10 anomalias do tipo I e II, não o suficiente para que a viatura seja reprovada, segundo o artigo 8 do regulamento:

(Reprovação)

O veículo submetido à inspecção deve ser reprovado sempre que for apurado qualquer dos seguintes resultados:

  1. a) Mais de 10 (dez) deficiências do Tipo I;
  2. b) Mais de 4 (quatro) deficiências do Tipo II;
  3. c) Mais de 10 (dez) deficiências acumuladas dos Tipos I e II;
  4. d) 1 (uma) deficiência do Tipo III.

Ou seja, o técnico ocultou muitas deficiências mecânicas da viatura que é objecto da nossa reportagem. De acordo com o proprietário, o carro tem deficiências que se enquadram em todos os tipos previstos pelo regulamento. são eles: Sistema de travagem, caixa de velocidade, suspensão, rolamentos, bomba de óleo e água, rótulas, problemas de direcção, casquilhas das ponteirinhas, problemas de embreagem, problemas na cambota, espelho retrovisor inexistente, mau funcionamento das portas, bancos e cadeiras em mau estado.

Das deficiências arroladas, constam da ficha de inspecção apenas as de travagem e direcção, que também são minimizadas. Adicionadas às demais, chegam a ser 18 problemas detectados na viatura e, simplesmente, foram ocultados. Não devia ser assim, à luz da legislação, no número dois do artigo 7:

As deficiências detectadas devem ser anotadas e dadas a conhecer ao proprietário do veículo ou a quem esteja na posse do mesmo no acto de inspecção”.

Concluído o processo, buscámos mais detalhes sobre o estado mecânico com o técnico que fez o acompanhamento e as suas palavras contrariam o que ele próprio fez constar da ficha de inspecção.

“Este carro tem problema de tudo. Por isso, deve-se fazer uma revisão geral. Tem que se mexer tudo”, recomendou o técnico da inspecção que recebeu o suborno para aprovar a viatura.

E a corrupção já foi normalizada no Centro de Inspecção de Veículos. Encontrámos carros aparentemente novos a aguardarem a sua vez, e um dos proprietários disse o seguinte:

“Mesmo que o carro pareça novo, tens de pagar alguma coisa, senão o reprovam. Sempre tens que dar alguma coisa”, sublinhou um dos condutores à espera de inspecção.

Saímos da inspecção com carro que é objecto da nossa reportagem aprovado, mesmo com os problemas que tem, e o condutor esclarece como foi possível.

“Tive que falar com os homens para poderem aprovar-me. Preciso de colocar o carro a trabalhar. Conversamos, entendemo-nos e fui aprovado”, revelou o condutor.

E a linguagem chama-se corrupção. A viatura tem licença para transportar passageiros, ainda que o estado mecânico deixe a desejar. O importante é mesmo o documento que a segurança.

“Para me fazer à estrada, preciso de ter o mínimo possível de papelada. Por isso, teve que criar facilidades para tal. Depois vou trabalhar para corrigir os problemas que tenho”, concluiu.

O “O País” entrevistou um mecânico que lida com carros há mais de 10 anos. João Tembe explicou como é que alguns problemas mecânicos ignorados pela inspecção podem afectar o funcionamento normal de uma viatura.

“Quando a caixa de direcção não está boa, você pode achar que o carro está a virar, enquanto permanece na mesma direcção, e aí pode contrair um acidente. Já quando o carro tem problema de travões, geralmente é porque os calços estão gastos. Com este problema, pode pensar que está a travar, enquanto não, e o carro está a escorregar e vai embater num outro carro ou em alguém”, detalhou João Tembe, mecânico na Cidade de Maputo.

Ademais, “se não mudas os cardãs, quando estiver a andar, eles saem e, quando isso acontece, é mais perigoso, porque o carro, de repente, vira e se você está a uma velocidade de acima de 60 km/h, haverá um acidente grave”, alertou o mecânico.

Com pelo menos essas três deficiências mecânicas detectadas, o carro não se deve fazer à via pela segurança do condutor e dos seus ocupantes. “Pára com o carro, se ainda não estiver em condições. Tenta organizar-se e depois põe o carro a funcionar”, recomendou João Tembe.

A Polícia de Trânsito é que fiscaliza as fichas de inspecção em carros que circulam nas nossas estradas. Só não tem um mecanismo de identificação de documentos falsos e – muitos deles – de saber se os carros estão ou não em bom estado mecânico.

Aliás, a Polícia de Trânsito diz que sequer sabe da existência de corrupção na inspecção de viaturas, mas critica alguns aspectos do Regulamento de Inspecção Técnica de Viaturas.

“Quando um carro, por exemplo, tem deficiência de travagem numa certa roda, no nosso entender, como Polícia, era seguro que esse carro não passasse na inspecção”, observou José Nhantumbo, da Polícia de Trânsito.

Ainda que o carro seja aprovado na inspecção, a Polícia diz que há um nível de deficiência mecânica que não dá para deixar passar.

“Sempre que se verifica, no âmbito da fiscalização, que uma viatura não está em condições seguras para efeito de circulação ou exercício de uma determinada actividade, a Polícia, legalmente retira o livrete desta viatura e submete-a ao INATRO para inspecção extraordinária”, revelou José Nhantumbo.

E isso aconteceu na Cidade de Maputo. No dia 20 deste mês, a Polícia de Trânsito enviou ao INATRO 16 livretes para inspecção extraordinária e apreendeu as respectivas viaturas por não reunirem condições de segurança para circular.

A Associação das Vítimas de Acidentes de Viação (AMVIRO) diz que, em casos de sinistros, a componente mecânica é, quase sempre, negligenciada.

“Posso citar, por exemplo, o relatório do acidente de Maluana, uma das questões que encontrámos lá, de forma muito evidente, eram pneus absolutamente carecas, foi notícia recentemente o citado caso de embreagem à corda de um autocarro algures em Manica”, citou Alexandre Nhampossa, presidente da AMVIRO.

E, estranhamente, tais carros foram inspeccionados e aprovados, o que, para Alexandre Nhampossa, é uma evidência de que algo está a falhar na inspecção de viaturas.

“A ficha de inspecção, diferentemente do que acontece até agora, tem que ser protegida, tem que se adoptar mecanismos de segurança de fiabilidade, por exemplo, por um código de barras. O sistema de inspecções em Moçambique, na forma em que está agora, tem fissuras. Não há fiabilidade”, denunciou o presidente da AMVIRO.

O ministro dos Transportes e Comunicações desconhece a existência de corrupção na inspecção de viaturas e diz que será intolerante se tais casos vierem à tona.

“Se tem dados sobre isso, não hesite em trazer, mesmo directamente a mim, através do meu gabinete. Pode-me trazer esses casos que, certamente, vou agir de uma forma intolerante contra esses males, que só podem roubar oportunidades ao nosso povo”, disse Mateus Magala, ministro dos Transportes e Comunicações.

E este sábado, 17 pessoas morreram num acidente de viação em Nhamatanda, província de Sofala, e o carro no qual seguiam tinha deficiências mecânicas.

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