“A mulher sobressalente”, de Dany Wambire, é um conto com crítica incisiva às dinâmicas patriarcais e às expectativas sociais sobre as mulheres. No enredo, o perfil da protagonista é de alguém que se recusa a ser apenas mais uma na sociedade e a epígrafe, “A luta pela liberdade começa com a limpeza dos ismos nas coisas”, atribui uma profundidade filosófica e crítica à obra, indicando uma abordagem reflexiva sobre temas de liberdade e opressão.
O conto de Dany Wambire inicia com um cenário de chegada, dramático, a 1 de Novembro de 1990. A partir dessa data, a narrativa apresenta uma perspectiva sobre as práticas familiares e sociais que perpetuam a subjugação feminina. A descrição da mãe da Quinita, encostada ao portão da casa da patroa da rapariga, envolve uma atmosfera de tensão e medo, exacerbada pelos latidos dos cães, que, na história, simbolizam a vigilância constante da sociedade.
A mãe de Quinita, acusada de facilitar a fuga da filha para a cidade, enfrenta a opressão tanto do marido quanto da comunidade que a julga. E ela, mesmo em meio a tanta adversidade, procura uma forma de proteger a sua filha, evidenciando a resistência feminina na luta pela dignidade.
O pai de Quinita, descrito como preguiçoso e explorador, espera que a filha se torne “peça sobressalente” da família, frase esta que é carregada de ironia e dor, indicando uma pressão para a conformidade e a negação de um futuro próprio, assim, continuando o ciclo de submissão.
A narração, na primeira pessoa, confere uma concepção íntima e pessoal, permitindo que o leitor sinta a angústia e a esperança da protagonista. A linguagem poética e metafórica para descrever a dura realidade é rica em imagens sensoriais e detalhes visuais. Por exemplo, “um banho da chuva”, “das brincadeiras de empurra-empurra com o vento”. Essas descrições não apenas situam o leitor no ambiente social, mas também evocam emoções e estados de espírito.
A escolha de palavras e o ritmo do texto criam uma sensação de urgência e inevitabilidade, reflectindo a luta constante da personagem para encontrar o seu lugar no mundo.
A descrição da mãe de Quinita, chorando, tentando consolar a filha, adiciona uma camada de empatia à personagem materna. A sua tentativa de se despedir da patroa e agradecer, em nome da filha, sugere um gesto de gratidão e submissão, projectando, com efeito, a posição subalterna das mulheres em Moçambique. Nesse sentido, aliás, o confronto de Quinita com o pai é um momento crucial. A reacção dele, cuspindo no chão, é um gesto de desprezo e domínio, ilustrando o desrespeito e a ausência de afecto paternal.
A imagem do pai, preparando-se para usar um arco e flecha, simboliza a agressão e a caça, evocando violência e controlo sobre a vida de Quinita. O uso do termo “pangolim” para descrever a postura defensiva da protagonista indica sua tentativa de se proteger em uma situação de perigo iminente, ou seja, ela parece estar em uma família tóxica, tentando encontrar uma maneira de se libertar, ainda muito nova.
As formulações como “diminuía a montanha das nádegas das suas mulheres” e “celeiros prenhes de alimentos” descrevem exploração das mulheres pela figura paterna. Esses aspectos não apenas destacam o controlo físico e emocional exercido pelo pai de Quinita, mas também a redução das mulheres a meros objectos de procriação e subsistência.
O conto expõe o desejo do pai de usar a filha como um peão em negociações matrimoniais, esperando que ela traga presentes e benefícios à família através da gestação. A descrição do pai como alguém que “deveria ser caçado, perder-se na própria armadilha” inverte as perspectivas tradicionais do género e poder, sugerindo que a verdadeira armadilha é a cultura opressiva que ele perpetua.
A visita de Quinita às amigas, que a recebem com espanto e pranto, e a pergunta “Como é que eu ousava regressar ao calvário?” descreve o estigma e a pressão social sobre as mulheres que tentam desafiar normas estabelecidas. A ideia de um pretendente que espera pela donzela até ela estar pronta para o casamento reforça o tema da objectivação e do valor atribuído à virgindade feminina.
A narrativa de Dany Wambire também destaca a violência social e emocional infligida às mulheres, no caso, através da história de Micaela. Acusada de adultério e humilhada publicamente, a situação ilustra a severidade com que a sociedade tradicionalmente lida com as mulheres que transgridem normas patriarcais. Mesmo sendo uma adolescente casada com um homem adulto, ela é julgada e condenada por um suposto adultério, sem nunca se considerar a sua juventude e a desigualdade de poder em seu relacionamento. A multidão que a agride verbalmente, chamando-a de “puta”, reflecte a sedimentação do machismo e a brutalidade colectiva contra a mulher que desafia ou é percebida como desafiando normas sociais.
A humilhação de Micaela culmina com a necessidade de sua família devolver os presentes do pretendente, mostrando que a rapariga e a mulher são tratadas como objecto transaccional, cujo valor é medido pelo seu comportamento sexual. Portanto, esta desumanização é uma crítica feroz à cultura patriarcal que reduz as mulheres a meras mercadorias.
A passagem que descreve o abuso sexual sofrido por Quinita é impactante. O uso de metáforas, como a comparação da sua impureza com os rios poluídos e a necessidade de “nascer de novo” como uma cristã baptizada enfatiza a profundidade do trauma e a ideia de busca desesperada por purificação e redenção. As descrições sensoriais de “gotas de sangue, secas, coloriam-lhes as margens, denunciando abuso de sexo” e “lágrimas adormecidas nas maçãs do rosto” não apenas visualizam o sofrimento físico, mas também simbolizam a dor emocional e espiritual.
“A mulher sobressalente” evoca um ambiente de violência e passividade, onde até os membros da família, como a irmã de Quinita, permanecem indiferentes ou condescendentes.
A solidão de Quinita é quase palpável, quando ela se refugia às suas sobrinhas, que também estão presas em um ciclo de violência e observação impotente. O sentimento de sujidade que ela tenta lavar simboliza a tentativa de remover a mancha do abuso e a marca indelével deixada pela violência masculina.
A narrativa faz uma crítica explícita à hipocrisia moral da sociedade, onde a honra e a pureza das mulheres são vigiadas e punidas com dureza, enquanto a violência e o abuso masculino são frequentemente aceites. A descrição do cunhado de Quinita, que comete o abuso sob o olhar passivo dos outros, reforça aquela observação.
O conto explora a tradição do “lobolo” (dote) em algumas culturas africanas, nas quais o casamento é formalizado através da entrega de bens do noivo à família da noiva. Nesse contexto, a narrativa revela uma prática cultural em que a procriação, especialmente a geração de filhos do sexo masculino, é de suma importância. O pai da narradora considera a dívida paga ao genro com o nascimento do neto, destacando as mulheres como meros veículos para a continuidade de um sentido machista de família.
O conflito central é a luta da protagonista contra as imposições culturais que a privam de sua autonomia e maternidade. A dor de Quinita é notória quando tenta reivindicar o direito de ficar com o seu bebé, fruto da violação do cunhado, com a cumplicidade familiar, mas é brutalmente contrariada pela autoridade personificada pelo seu pai.
A voz de Quinita denuncia como as normas culturais podem ser manipuladas para justificar comportamentos abusivos, revelando uma sociedade que valoriza mais a estabilidade dos casamentos do que a felicidade e o bem-estar individual das mulheres. A entrega do bebé à irmã de Quinita, para salvar o casamento dela por “só fazer meninas”, é um exemplo extremo da mercantilização das relações familiares em determinados contextos.
A escrita de Dany Wambire, finalizando, é directa e imersiva, com diálogos que carregam a tensão e a dor da protagonista. A simplicidade contrasta com a complexidade dos sentimentos expressos, o que aumenta o impacto emocional do conto. A repetição do tema da dívida e do pagamento, sempre com a questão do “lobolo” no centro, reforça a ideia de que as relações humanas são, cada vez mais, tratadas como transacções económicas, desprovidas de afecto genuíno.
*Texto escrito no contexto da Oficina de escrita: crítica de arte, organizada pela Fundação Fernando Leite Couto, com a pretensão de estimular a crítica artística no país.