Não sou nada.
Nunca serei nada.
Não posso querer ser nada
À parte isso, tenho em mim todos os sonhos do mundo.
Álvaro de Campos 15-1-1928
Ao
Adérito Matsimbe – Spice
A casa assiste de porta aberta à correria da mãe do Xavito. Será que ela teve um desarranjo intestinal ou estará a fugir da polícia municipal? A Dona Maimuna exibe uma passada de fazer inveja aos jovens. Riscou a rua até ao seu quintal e, num ápice, entrou casa adentro para o espanto das laranjeiras. Segunda-feira, logo pela manhã era isto, este inesperado frenesim.
– Xavito. Xavitoôôôôhhhh.
– Mamããããããhh. – Respondeu do fundo do quintal, interrompendo o soprar do carvão que revelava teimosia.
– Telfone, papá! Querem falar contigo. – Dona Maimuna interrompe a marcha em suspiro longo.
Xavito põe-se a falar com a voz do outro lado da linha, a sua careta trazia movimentos alegres, ele meneava a cabeça, esboçando um sorriso contido. Parou em silêncio momentâneo e anunciou:
– Mamã fui chamado para uma entrevista na quarta-feira. Parece que é uma empresa nova.
– Hi! Hosi yanga! Deus te oiça, filho…
– Vamos ver, mãe. Se ligaram é porque gostaram do meu currícullum.
– Que assim seja, meu pai!
A Dona Maimuna voltou à banca montada doutro lado da rua Kapa Não Se Escreve. Fazia já dois anos que Xavier se tornara num estafeta de distribuição de CV`s de porta em porta. Nunca se quer recebera um sinal que fosse de recusa. Xavito ganhara, por direito, um lugar cativo nos escritórios do Jardim Tunduro. Ali se reunia e era tido em alta conta entre os seus companheiros. O bairro de Maxaquene ‘C’ conhecia-o como o explicador e professor para os exames de admissão.
Um novo dia chegou luminoso. Ao certificar-se da indumentária Xavier meteu-se a caminho da empresa de telefonia móvel, localizada para os lados da Rainha da Maxaquene. Teve o cuidado de ir à esquina engraxar os sapatos emprestados pelo primo Flávio e ajeitar a gravata alugada ao vizinho que estava de folga naquela manhã de quarta-feira. Olhou para as horas e notou que faltava ainda uma hora e meia para a entrevista. Xavier preferiu fazer uma caminhada. Assim pouparia meticais para o pão no regresso.
O jovem benzeu-se pela terceira vez, ao passar junto à Igreja Nossa Senhora da Vitória e, acelerou o passo já sobre o passeio da Colmeia. Sem dificuldades encontrava-se a metros da Pandora. A avenida Eduardo Mondlane ficava a minutos e, daí a um quarto de hora estaria no décimo andar da empresa.
A camisa a cheirar a ferro de engomar, passada mil vezes pelas mãos zelosas de Maimuna Zunguza da Silva. O lencinho dobrado e vincado no bolso esquerdo, era a viva ilustração do pilar da fé maternal Estava garantida a porta de entrada para o quintal dos assalariados. Xavier inebriava-se, cheio de sonhos: «Do primeiro salário, mais de metade será para a minha mãe montar um negócio decente. Depois, aos poucos reabilito a casa e descolo a Milú para o meu ninho». Descia rente ao muro da antiga maçonaria, a Escola Industrial. O Xavier finta para evitar a lixeirada transbordada do contentor à berma do passeio, e zás o azar oportunista faz o filho da Dona Maimuna tropeçar, caindo de borco sobre o passeio. O pé esquerdo estava preso a uma fossa aberta, a camisa tinha manchas de sangue. Estava irrenconhecível. Sangrava pela boca, tinha perdido dois dentes. As calças tinham um rasgão indecente, na parte frontal e de baixo, como um desses indigentes que pulverizam a capital.
Dois rapazes que por ali passavam aproximaram-se em ajuda ao sonhador de troféus. O senhor da rua que há pouco roncava, em sono de bebé, ocupando uma esteira, já estava acordado e disponível a acudí-lo. De olhos marejados Xavier chorava em desespero e fúria. Não se continha. Fervia, em soluço contínuo. Em gíria futebolística dir-se-ia que aquela, era uma grande penalidade em plena avenida Vladimir Lénine. Uma viatura encostou-se à berma. Será o carro do vídeo-árbitro da Salubridade e Meio-Ambiente ou uma alma caridosa, em socorro do filho da Dona Maimuna?