O novo livro de M. P. Bonde tem 59 páginas e é uma viagem do poeta com muitos pontos de fuga. Aroma fóssil é, também por isso, um processo de procura anterior, através do qual o autor pretende seguir em frente, um pouco livre do que já publicou em livro. Nesta entrevista, Bonde refere-se a todo um panorama que foi decisivo para que a sua poesia surgisse, nesta sua terceira proposta literária.
Numa leitura apreçada do título, podemos pensar que o olfato é o princípio do que gerou este livro. No entanto, quando o lemos, logo percebemos que teve de investir num conjunto de sensações durante a escrita. Como isso aconteceu?
Foi um exercício interessante, porque queria fugir dos meus dois livros anteriores.
E conseguiu?
Os leitores irão dizer. A ideia era fazer um corte com aquilo que já fui, como autor, mas mantendo a voz. Isso levou-me a voltar à infância e às memórias e, depois, a cruzar com autores que me poderiam ajudar a atingir esse Olimpo.
Por exemplo?
Patraquim, João Paulo Quehá (nas artes plásticas), a infância dos continuadores e toda essa toponímia da cidade que foi alterada. O livro discute um pouco disso. Foram essas influências, essas informações que me levaram ao Aroma fóssil.
Como é que a palavra, no seu caso, funciona como um meio que lhe transporta para um certo tempo, um certo espaço?
Isso tem a ver com a forma como se concebe. Normalmente, no meu processo criativo, as palavras vêm descendo, não as procuro, como se elas se encaixassem em cada verso. Mas esse é um exercício de transpiração, e não de inspiração. As palavras vêm… com as memórias do meu pai e com esse caminhar pela cidade. Acho que isso me chegar a bom porto.
A poesia é um cruzamento entre um plano real e um plano ideal, onde se encontra esse Olimpo possível?
Sempre. É preciso sonhar, porque a poesia é sonho. Se um poeta não sonha, não atinge o orgasmo.
E como é que o poeta consegue perceber que atingiu o que quer que seja através da arte da palavra?
Na verdade, a arte nunca está acabada. Se me dessem o livro hoje, talvez remodelasse ou reconfigurasse alguma coisa. Mas sempre se chega a um ponto intermédio, em que se percebe que aqui pode pender para o bem ou para o mal. Mas, para mim, o mais importante é ter o mínimo que possa garantir a compreensão dessa poética que quero transmitir. Para mim, o livro era, independentemente do que queria fazer, uma espécie de experimentalismo. E o experimentar significa deixar aquilo que foi feito e trazer coisas novas. Então, este livro também é uma homenagem ao meu pai, porque foi ele que me levou a esses lugares de que os textos falam. Ele deu-me a conhecer ao mundo, na minha adolescência. Depois encontrei uma nova malta, uma nova geração que me indicou o caminho. Aí o meu pai já não era a minha referência, esse meu herói de infância. Enfim, eu tive a sorte de ter livros em casa, porque nos livros compreendemos o mundo para conhecermos a nós mesmos. Como dizia um autor, nós lemos para viver. Não é para sermos mais famosos ou mais conhecidos. Lendo, conseguimos sair de boas ou de más situações.
Ao tentar fugir de alguma eventual repetição, em relação a Ensaios poéticos ou A descrição das sombras, de que maneira conseguiu reencontrar-se consigo e com os seus sujeitos poéticos?
Pela forma como tenho conversado com os meus companheiros de trincheira, a voz está lá. O texto não se altera apenas por causa da mancha gráfica, mas pela forma como foi concebido. Os outros tiveram sombra, solidão. Este livro tem outros aromas. Aroma fóssil é este processo de procura anterior. A leitura é um processo descendente, em que sempre vamos procurando novos autores, mas que, quando lá chegamos, nos levam a autores anteriores. É este processo de fuga que procuro neste livro, que é: a partir das coisas que eu conheço, trazer novas formas de ver.
Sem discordar de si, este livro tanto é uma busca por uma proposta anterior quanto por outra ulterior.
O livro é um pouco disso: de como nos manejar perante novas situações. Vivemo-las, mas é preciso dar o salto. Não ficarmos presos a este arame que nos cerca. Temos de arranjar formas de surpreender o leitor. Mas, acima de tudo, tenho de me surpreender a mim mesmo. Porque nunca escrevo para o leitor. Eu escrevo por mim. O leitor virá um dia, ao seu tempo. Eu tenho de sentir e de me preencher de ferramentas para continuar a escrever.
Há aqui uma terra, uma luz e uma noite a fragmentar os cadernos que compõem o livro.
A terra é um lugar que nos mantém. Hoje, as pessoas estão à procura de novos lugares. Vai-se a Marte para se saber se é possível ter vida lá. No entanto, esta é a terra, o lugar ideal. A luz ilumina-nos e mostra-nos o caminho. A noite é um lugar de criatividade, onde despimos os fatos, ficamos de calções e conversamos sobre tudo e mais alguma coisa. É esse o cruzamento destes três cadernos.
Gérrard Genette escreveu uma vez que a noite é mais propensa à criação poética do que a luz do dia. Concorda com isso?
Penso que a noite é mais propícia para isso, por ser mais calma.
E eu acho que a sua poesia transporta todo o peso que podemos identificar na palavra noite. Mesmo em A descrição das sombras, à imagem de Aroma fóssil, temos essa carga de dor e nostálgica que incorpora essas ferramentas sobre as quais trabalha.
Nós somos doentes e loucos. Se fizemos um diagnóstico desta sociedade, veríamos que é doente. Mas conseguimos nos desenvencilhar desses problemas para continuar a viver. É esta carga que talvez me leva a rebelar-me com a poesia, a fazer a descarga a partir da poesia. Senão não vivo.
Como fica, depois de terminar um livro?
Depois de o livro ser lançado, há uma espécie de paz de espírito indiscritível, que nos permite abraçar novos projectos. Enquanto um livro não sai, ficamos à volta, a girar como alma penada.
Essa liberdade que tanto estima é em relação a si, ao seu meio, aos seus medos ou aos receios?
Um autor tem de ser livre. Se não for livre, não escreve.
E o medo, pode ser importante para a criação?
O medo é mau, porque podemos escrever um verso, um texto e acharmos que nos pode dar alguns problemas a posterior. Enquanto autor, eu tenho de explorar todas as dimensões, o medo na perspectiva de dar a conhecer uma certa realidade e não usar o medo para me atrofiar enquanto autor.
A dor implícita e explícita continua presente em si. É uma marca?
É a voz.
E de que se fundamenta essa voz?
Com as amarguras, porque eu vivo numa sociedade e sofro com ela. A forma de me manifestar é essa, através de livros.
Ainda a propósito da dor, uma passagem do primeiro poema diz o seguinte: “então, arrefeça a dor na respiração do verso”. Conseguiu fazer isso o que esse sujeito poético sugere?
Penso que sim, pela arrumação do livro e de como os meus colegas estão a conversar sobre o livro. Até porque, de outro modo, o editor não iria maçar-se em editar o livro. Há aqui uma conjugação de factores que me ajudou a atingir esse objectivo.
O silêncio da sua escrita é uma matriz que se coloca como elemento da sua construção poética…
Deve ser culpa do Borges. Ele fala da perfeição no silêncio. Eu estou à procura dessa perfeição no silêncio. Mas é num silêncio ensurdecedor. Não é um silêncio na perspectiva do mutismo do autor. É o silêncio que faz com que eu escreva. Uso a palavra para manifestar o meu contentamento ou a minha alegria perante uma situação.
Um silêncio que permite os seus sujeitos poéticos vislumbrarem o futuro?
Premonições, mais uma vez.
O futuro chega a ser uma utopia, já agora?
O futuro é amanhã, é hoje e já foi ontem. O futuro é poesia, é sonho, é aquele nosso projecto de vida e vamos seguindo. O futuro é uma meta.
O futuro não é o que alcançamos, mas o que poderemos alcançar?
Exactamente. Se não temos sonhos, para quê vivemos?
Para ler.
Para respirar… É preciso sempre sonhar. Como diz Patraquim, viver é sonho. Toda a nossa leitura é para aprendermos o mundo, mas temos de voltar a África, o berço da humanidade.
Esta pergunta surge de uma que é feita no poema 6. “Quem tricota a corda invisível do silêncio?”
Há sempre uma entidade que nos alimenta a tecer esta lã para atingirmos o nosso objectivo. Esse tricotar é cuidar dessa planta, para que possa florir.
O silêncio, em M. P. Bonde é uma virtude?
Sempre. Porque é esta paz de espírito que me permite escrever.
A “pulsação do verbo”?
Primeiro foi o verbo, já diz a Bíblia. O verbo é a nossa enxada, para nós existirmos, enquanto autores. Eu preciso disso para continuar a alimentar a minha alma.
Eu não sei se existem livros fáceis, complexos, difíceis ou simples de escrever. Colocando a pergunta nesses termos, como foi escrever Aroma fóssil?
Não foi fácil. Estava ainda a conversar com uma colega, há dias, que me disse que o livro tem de ser lido com um dicionário ao lado. É uma perspectiva. O que pretendo é dar mais conhecimento ao leitor, e não descer ao seu nível.
Sugestões artísticas para os leitores do jornal O País?
Sugiro o álbum Blue windows, de Válter Mabas; e Animais do ocaso, de Álvaro Taruma.
Perfil
P. Bonde nasceu em Maputo e é o primeiro vencedor do Prémio Literário Fernando Leite Couto. Além de Aroma fóssil (gala gala – 2021), é autor de Ensaios poéticos (Cavalo do Mar – 2017) e de A descrição das sombras (Fundação Fernando Leite Couto – 2018).