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Entre eu e Deus – o reflexo de um conflito em ebulição?

Entre os humanos há-os que dizem: Cremos em Deus e no Dia do Juízo Final. Contudo, não são crentes. Pretendem enganar a Deus e aos crentes quando só engam a si mesmos, sem se aperceberem disso.

in Alcorão

A arte continua sendo uma dimensão importante na problematização da realidade. No contexto moçambicano, o conto, a novela, o romance e os filmes sempre foram lugares profícuos na recriação de certas peripécias quotidianas. E este é o caso de Entre eu e Deus, documentário cuja essência da história é uma viagem para um lugar distante, no qual se desbrava sonhos, tradições e, algo extremamente grave: a crença, enquanto bênção feita de sinceridade.

O documentário de Yara Costa tem na Karen, jovem cujos atributos não defraudam a fama das muthiyana de Nampula, o centro. Logo, a partir daquela personagem, a história lança uma discussão sobre o que o islão representa e deve representar num território em que muito antes de conhecer as cores do cristianismo já tinha no alcorão uma bússola para o paraíso. Por lidar com a fé há muito enraizada sobretudo no litoral do Norte do país, Entre eu e Deus leva-nos à Ilha de Moçambique, o berço de um país e de uma religião que mantém firme os seus pilares na construção de um projecto de país. De facto, no filme realizado pela moçambicana Yara Costa há uma tendência de se pensar a nação como um espaço de co-existências religiosas, com e sem tolerância, mas sempre à procura de um relativismo cultural elementar, possível na urgência de se aceitar a diferença como parte de algo que nos deve eternamente completar.

Roçando o islão na mira de uma mulher ainda a conhecer-se, determinada a alcançar o resultado que daí pode advir, este documentário mostra-nos que o conceito do “bem” é relativo e que o choque entre culturas também resulta da incapacidade de se aceitar essa abordagem. Aliás, no próprio filme, é evidente: certas personagens são apologistas de um islão, digamos, “puro” – embora não saibamos bem o que isso é –, com origem na “fonte” – outra confusão, afinal, sempre pensamos que a fonte é Deus, e não um espaço. Outras, representadas, por exemplo, nas convicções de uma makhuwa adulta, que aparece no enredo a colorir o semblante à base de muciro, entendem que o islão, na Ilha de próspero, está implicado às tradições locais. Diante desta situação, Karen aconselha-se, quase que de forma infantil, aparentemente ingénua, num sujeito cujos voos da sua experiência passam por Arábia Saudita. Essa é uma das passagens mais importantes do filme, porque, logo se nota, é em conversas como aquelas que se define o futuro de um muçulmano em formação. Na verdade, aquele momento é muito semelhante com o descrito na obra de José Rodrigues dos Santos, Fúria divina, romance em que um menino chamado Ahmed, ao ser confrontado com “dois tipos” de islão, acima diferenciados, opta pelo designado fundamentalista, pelas respostas que foi colhendo na interpretação rija da sharia. Dando-nos este panorama, em que se questiona o que é certo e o que é errado e não em como o certo e o errado podem ser as duas faces do mesmo propósito; ao revelar os preconceitos à volta de certas preferências islâmicas por parte de crentes de outras seitas, Yara Costa desenterra a raiz de um conflito que, caso não fique resolvido urgentemente, pode ser muito bem aproveitado para fomentar outras coisas além da forma de ser e de estar dos muçulmanos em Moçambique.

Este Entre eu e Deus, que deveria ser Entre mim e Deus – que, esta quinta, às 18h, volta a ser projectado no Franco – é um alerta à moderação, bem como uma janela aberta para podermos ver o que se passa com os moçambicanos fora do quintal de casa ou, movimento inverso, o que se passa com os nossos vizinhos no nosso quintal. 

Título: Entre eu e Deus

Autor: Yara Costa

Produtora: YC Films

Classificação: 14

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