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“A figura da Noémia torna-se importante como uma referência tutelar, não só do ponto de vista estético, mas muito particularmente, ético”

No dia 20 de Setembro de 2001, quando Noémia de Sousa completava 75 anos de vida, o livro Sangue negro foi finalmente lançado pela Associação dos Escritores Moçambicanos (AEMO), no Paços do Conselho do Município de Maputo. A “Mãe dos poetas moçambicanos”, na altura doente em Portugal, não esteve presente nessa cerimónia – ao lançamento foram familiares e amigos. A homenagem em livro veio mesmo a calhar, pois, um ano mais tarde, Noémia morre em Cascais. Hoje, passam aproximadamente 20 anos de publicação de um dos livros mais representativos da literatura moçambicana e africana. Por isso, esta página d’O País pretende convidar autores que conviveram, colaboraram e/ou estudaram a obra de Noémia de Sousa, como forma de homenagear uma mulher que, já no período colonial, se expôs em prol da liberdade de um povo e de uma nação que agora existe. O primeiro autor que convidamos para esta série de entrevista é Francisco Noa. O professor universitário e ensaísta colaborou na histórica primeira edição de Sangue negro.

 

Francisco Noa, já lá vão 20 anos após o lançamento de Sangue negro. Qual é a sua percepção sobre a actualidade do livro de Noémia de Sousa?

Em primeiro lugar, eu gostaria de dizer que participar da edição do livro da Noémia, em 2001, foi, possivelmente, um dos projectos mais gratificantes da minha vida, em termos profissionais, como professor de literatura, e em termos pessoais, porque se tratava ali de fazer uma espécie de justiça, podemos mesmo dizer, justiça histórica. Como sabe, a Noémia não tinha sido editada ainda. O que circulava eram cópias de manuscrito dela, e essas cópias circulavam desde os finais dos anos 40. Ela, como nós sabemos, tem uma importância fulcral na literatura moçambicana, nas literaturas africanas, porque faz parte da geração fundadora. Tenho defendido que esta é a geração mais importante da literatura moçambicana porque conseguiu instituir aquilo que são os modelos, os paradigmas da nossa literatura e que vingaram em termos temáticos, estruturais, estéticos e, inclusivamente, em termos ideológicos no sentido daquele compromisso, na altura, com o projecto de país. Esta geração da Noémia, do Craveirinha, do Knopfli, do Rui Nogar, Fonseca Amaral, Aníbal Aleluia, Orlando Mendes, entre outros, teve o mérito de concorrer para o surgimento da literatura moçambicana, como sistema, com qualidade e maturidade absolutamente extraordinárias. E se formos a olhar para a idade deles, à época, eram muito jovens. Alguns nem chegavam aos 20 anos nos anos 40. Há uma grande maturidade da parte deles de ordem política e estética, daí que a obra deles perdura até os nossos dias. Ela tem eco nas novas gerações e continuará a ter nas gerações vindouras. Costuma-se dizer que os génios são os fundadores e os outros são simplesmente seguidores. No caso da Noémia, penso que essa relevância é ainda maior. Primeiro porque ela era mulher num contexto como aquele. Se nós, em pleno século XXI, ainda temos problemas do ponto de vista do lugar que a mulher deve ocupar na sociedade, o papel da Noémia, ao assumir o protagonismo artístico e cultural atinge uma dimensão que ultrapassa a própria época dela. Então, quando surgiu esta possibilidade de editarmos a Noémia, muito pela persistência do Nelson Saúte, que esteve à frente da iniciativa e pela autoridade intelectual e amizade que ligava a professora Fátima Mendonça à Noémia, nós conseguimos fazer a edição do livro. Obviamente com o papel editorial de enorme importância jogado pela AEMO. O que acontece é que muita gente tentou, durante anos a fio, editar a obra dela, mas em vão. E aqui há uma particularidade que é importante salvaguardar, é que Noémia de Sousa não era apenas uma grande poetisa. Não era só uma poetisa excepcional. Ela era uma grande senhora no sentido de que conjugou o percurso da vida dela, as posições de vida com aquilo que escreveu. Todos os valores e princípios que estão registados na obra tinham a ver com aquilo que era a vida dela. Então, nós, ao fazermos este acto de justiça, não era só do ponto de vista estético ou literário, mas era também da pessoa, da senhora Noémia de Sousa. Outro apescto importante a assinalar é que a Noémia escreveu por um período muito curto e ela tinha dificuldades de se assumir uma poeta, uma artista. Muitas vezes, em privado e em entrevistas, defendia que os seus poemas não tinham a relevância que lhes era dada. Digamos que ela representava os valores que hoje estão em desuso, numa convicta e reiterada  atitude anti-vedeta. Ela manteve essa atitude até ao fim da vida dela, porque ela dizia que não era poeta. Havia muita humildade da parte dela e essa humildade perpassa profundamente nos textos dela. Perante a nossa insistência, ela ficou encostada entre a espada e a parede no sentido de que a humildade podia-se transformar numa outra injustiça, que era não haver um monumento para ela. Para mim, o maior monumento que se pode fazer a uma figura como a Noémia era publicar o livro. E, neste caso, era publicar Sangue Negro. Depois de muita relutância da parte dela, acabou por aceitar, sempre com a ressalva de que não merecia. E lá conseguimos publicar o livro. Felizmente, um ano antes dela morrer. Foi muito importante fazer-se esta justiça enquanto ela estava viva.

Os impactos da obra da Noémia?

Os impactos da obra da Noémia e daquela geração? Eu penso que eles continuaram a ecoar na nossa literatura e, até certo ponto, na sociedade. Uma das grandes virtualidades da arte e da literatura em particular é ela ter também uma dimensão antecipatória. Muitas das coisas que hoje estamos a viver, caso da questão da independência política, foi projectada nos anos 40 por esta gloriosa geração. Não eram muitos os que concebiam a independência política do país nessa época. Inclusivamente, nos finais dos anos 40, ela fez parte de um grupo onde estava o Ricardo Rangel, Dolores Lopes e o José Craveirinha que escreveu uma carta exactamente a reivindicar a independência de Moçambique, facto que está muito presente na poesia dela. Como nós sabemos, a poesia da Noémia, por um lado, tem a ver com as injustiças da sociedade colonial, tem a ver com reivindicação de um território cultural, mas também tem a ver com a previsão, com a antecipação de um país por vir, que é esta nação política que na altura não existia, era apenas um território subjugado. Penso que a conjugação de todos esses elementos: de natureza ética, social, política e de natureza estética vão norteando aquilo que é a nossa literatura. Tudo o que eles conceberam e intuiram está lá. Tudo o que Luís Bernardo Honwana escreveu, está lá; tudo o que a geração Charrua escreveu, está lá; tudo o que as novas gerações estão a escrever, está lá, sobretudo porque a Noémia transcendia algumas tendências que têm a ver com os “ismos”, que fomos conhecendo ao longo das décadas. Ela tinha uma visão muito ampla, e o que ela queria passar na sua escrita era exactamente uma aspiração aberta da relação profunda que tinha com uma terra, que era a sua e de todos que a ela pertenciam, e que era muito sofrida por causa da sobreposição colonial. A Noémia de Sousa tem o mérito de a sua poesia, algo que vai ser uma das marcas da nossa literatura, dar voz àqueles que não tinham voz. No caso dela, estamos a falar de todos os que eram subjugados, dos homens das mulheres, das prostitutas, dos magaizas (que são os mineiros), dos trabalhadores do porto. Sem que fosse assumidamente feminista, ela representa uma visão muito ampla e uma sensibilidade particular sobre o lugar e o papel da mulher na sociedade, combativa, irreverente e visionária.

 

A grande homenagem a Noémia foi a publicação do livro dela ainda viva. Publicado o livro, lá vão 20 anos, como podemos continuar a cantá-la?

O facto de nós, hoje, termos uma literatura onde prevalece a diversidade, a irreverência e a continuidade em relação aos elementos telúricos, sociais e culturais, mostra que a escrita e o exemplo da Noémia e da geração dela vingaram. A grande celebração que nós fazemos à memória da Noémia e a toda geração é que nós estamos com uma literatura, hoje, não só de grande vitalidade, mas também de grande qualidade. Nós temos uma série de jovens que, na sua irreverência, não deixa de ter uma preocupação de se ligar àquilo que são as grandes preocupações universais e da sociedade em que estão inseridos; no sentido do papel que têm de ter no processo da transformação da sociedade; no sentido de apelar a uma perspectiva até mais cosmopolita do que localista.

 

A primeira edição de Sangue negro saiu sob a chancela da AEMO, em 2001. Cantar a obra da Noémia passa por a reeditarmos, para que mais pessoas possam a ler…

Eu entendo essa preocupação e acho que seria bom que assim fosse. Se a AEMO não consegue fazê-lo, outras editoras dentro e fora do país podem fazê-lo, tal como o fez a Kapulana, no Brasil. Mas, muitas vezes, a melhor forma de nós preservarmos uma certa memória é ao nível do nosso subconsciente. Entendo que isso está presente na literatura que nós fazemos hoje. Ela, em parte, continua estando ligada a essa matriz que determinou que esta literatura fosse moçambicana, com questões ligadas à oralidade, às tradições africanas, a questões sociais e culturais. Tenho participado de alguns saraus culturais de homenagem à Noémia, curiosamente organizadas por jovens. Significa que esta memória está presente. Obviamente que termos uma nova edição nacional seria uma outra forma de perpetuarmos a memória dela. Mesmo assim, ao nível daquilo que podemos considerar substracto criativo das gerações que vieram depois dela, o legado dela está lá muito presente.

 

O que dizer da edição brasileira?

A edição da Kapulana de Sangue negro (2016) penso que abriu outros horizontes da recepção da obra da Noémia no sentido de que se ela estava circunscrita a um espaço mais africano, com a edição da obra dela no Brasil dá uma possibilidade muito mais vasta de alargar os universos da recepção, da leitura e do conhecimento da literatura moçambicana. Não tenho dúvidas de que conhecer um autor de um determinado país já é uma porta que nós estamos a abrir para conhecer um pouco, ou muito, da realidade desse país. Felizmente, neste momento temos vários autores nacionais a serem publicados no Brasil, e não só, o que dá uma maior amplitude da relevância que a literatura moçambicana vai tendo também.

 

A escrita da Noémia projecta um país antes de existir. Que mensagens ela continua a enviar-nos agora que o país existe?

É interessante que esta questão de um país por existir atravessou aquela geração. São vários os poemas com essa característica. Por exemplo, “Poema do futuro cidadão”, “Sia Vuma”, de Craveirinha. No caso da Noémia, há o “Poema da infância distante” (aliás, o tema da infância é muito forte nesta geração), em que é uma representação daquilo que eram as particularidades existenciais dela na infância e que, no fundo, era um retrato das potencialidades, injustiças, contradições, da sociedade em que ela se encontrava. Mas é um poema com uma forte projecção para o futuro. Há uma passagem que ela diz: “Eu creio que um dia o sol brilhará sobre o Índico”. Portanto, o que é de enaltecer nesta poesia é que além de se preocupar com as questões do seu tempo, ela virou-se para o futuro e numa perspectiva que significava um compromisso com um ideário, e esse ideário tinha a ver com uma nação independente, multirracial, multiétnica e multilinguística. Até certo ponto, nós conseguimos isso. É por isso que considero que o mérito desta geração, o mérito desta literatura, esta relação profunda, reivindicativa e valorativa com a terra, com a sociedade, e que transcende sempre o campo eminentemente estético e que atinge o domínio político e social. Por isso ela acaba por ser incómoda, e foi incómoda. Não é por acaso que Craveirinha, Rui Nogar e Luís Bernardo Honwana foram presos. A literatura mexe com crenças e com convicções e, sobretudo, com os poderes instituídos.

Há receitas para que o país continue produzindo autoras do nível Noémia?

Penso que essas autoras, sobretudo na poesia, já estão a surgir. Estou a pensar na Hirondina Joshua, na Melita Matsinhe, na Sónia Sultuane e na Lica Sebastião, entre outras. Não sei se existem receitas, além da leitura, obviamente, mas penso que a literatura moçambicana, depois de um período não muito bom, finais dos anos 90, penso que hoje está com outra vitalidade, com outra energia e, sobretudo, está com outra qualidade e aberta a novas experiências. Antes era a Noémia praticamente sozinha. Hoje nós temos muitas Noémias, na dimensão obviamente de cada uma delas. O mérito da Noémia está no facto dela fazer parte de uma plataforma fundadora, que lança tudo aquilo que vão ser as linhas criativas e produtivas daquilo que hoje vamos chamar literatura moçambicana. Eu penso que essa vitalidade está aí. Quer nas mulheres, quer nos homens também.

 

Voltando ao impacto da obra dela nas gerações vindouras…

Penso que o exemplo da vida dela assenta muito na questão ética. Nós vivemos um período, uma época, um tempo em que as questões éticas são absolutamente secundarizadas. Há um processo acelerado de desumanização da própria humanidade, por vários motivos, e um dia podemos falar disso. A figura da Noémia torna-se importante como uma referência tutelar do ponto de vista ético, sobretudo pela humildade, pela sua coerência em toda a sua vida. Contrariamente ao que ela foi e sempre defendeu, o que nós vivemos na nossa época em que muitos de nós gostamos de nos pôr em bico dos pés, acreditando em coisas que não somos e não teremos nunca. Quando nós lemos a biografia da Noémia, a obra dela, a vida dela, nós temos que parar e projectar aquilo que foi o percurso e o exemplo dela na vida que nós vivemos, de facto, a relação com os outros e com a humanidade, aquilo que o filósofo franco-lituano, Levinas, defende sobre a responsabilidade em relação ao outro. A Noémia procurou sempre ser responsável por todos outros, sobretudo por aqueles que não tinham voz e mal se podiam defender. Há, por exemplo, um episódio simplesmente memorável que foi o facto de ela, por iniciativa própria, ter estado, e de forma destemida, por detrás de um movimento de apoio, nos finais dos anos 40, a um jovem moçambicano que não estava a conseguir continuar os seus estudos na África do Sul. Esse jovem chamava-se Eduardo Chivambo Mondlane.

 

 

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