XIPIKIRI
Khô! Foi um som seco. Mudo. O crânio estremeceu. Os ombros saltaram. Os amortecedores do pescoço cederam. A nuca, sacudida, bateu as costas. Os olhos fecharam-se com uma força brusca, como se a cabeça fosse implodir. No rosto a carranca de dor. O elástico dos músculos retesou. Os dedos saltaram das mãos, como se a dor quisesse sair por ali. O tronco curvou-se. O homem encolheu-se. E a dor desceu, desfazendo-se, de vértebra em vértebra, como os dados comunicantes de um dominó.
Era um gotuâna, aquele carolo que se dá, com o braço em martelo, a falange do dedo médio a espreitar, emprestando a mão, a forma pérfida duma serpente pronta para o ataque. O gotuâna é disciplinador e tem o condão da hierarquia. É dado de mais velho para o mais novo, foi por isso que o homem não entendeu, como é que ele, naquela idade, pôde levar um gotuâna… um gotuâna como se fosse miúdo, justamente ali naquele mato grisalho, onde brilha uma clareira de calvície que, ao que se sabe, significa respeito.
Ouvia o trepidar irritante de um veículo a misturar-se aos zumbidos da dor. Soltou as pálpebras e foi abrindo os olhos, devagarinho, à medida que a dor se ia desfazendo. Não reparou na agitação à sua volta, porque a dor voltava, como uma réplica teimosa de um terramoto, latejando ao compasso da pulsação… e o trepidar irritante de um veículo a misturar-se aos zumbidos da dor. Levou, por instinto, a mão à cabeça. Seguiu as coordenadas da dor para alcançar o local do sinistro. Percorreu a careca, com lentidão desesperada. Acariciou a dor, para a acalmar. Uma dúvida martelava: “Quem seria? Quem seria este filho da… quem ousaria desrespeitar esta calvície grisalha com um humilhante gotuâna?”
Manteve-se sentado sobre o caixote. Virou a cabeça, lentamente, seguindo com o olhar, a sombra do provável autor do desrespeito. Nascia atrás de si, de baixo de um sapato preto, sofrido, maquilhado à graxa. As calças da cor de um uniforme conhecido, alheias ao vento. Um cassetete na cintura e um emblema na fivela do cinto. Levantou a cabeça, mas o sol, sobre o ombro do fulano, não deixava ver o rosto. Tinha o punho ainda cerrado, como uma serpente pronta para outro bote de gotuâna:
– Não sabe que não deve vender aqui?
Por entre as pernas magras do agente viu a viatura com motor de trepidar irritante que se lhe misturava aos zumbidos da dor. Na porta, um logotipo, igual ao da fivela do cinto e a escrita com força das letras maiúsculas: POLÍCIA MUNICIPAL. Uma senhora desesperava, enquanto dois fulanos de uniforme atiravam as coisas que vendia para a bagageira do carro. Outra mulher, caída no asfalto, apoiou-se ao lancil do passeio, tentando levantar-se, ao mesmo tempo que recuperava do chão os seus legumes e frutas, equilibrando um bebé às costas.
– Hein? Não sabe?
Quase riu-se quando viu, ainda por entre as pernas magras do agente, outra mamana perseguida por um polícia, ser acudida por um carteirista, que lhe protegeu os bens. Mas não se riu porque os olhos fecharam-se, com muita força, como se a cabeça fosse implodir, quando sentiu a dor inexplicável de outro gotuâna a alastrar-se pelo corpo, e o trepidar irritante do veículo a misturar-se aos zumbidos da dor. Khô!
– Não sabe?