Foi na semana das exonerações. Antes do comunicado das novas nomeações. Havia um brilho diferente no sorriso das pessoas. Tudo parecia merecer polimento especial e muita graxa.
Abri os olhos. Os lençóis espalhavam-se como um mar de ondulação rebelde. Laurinda, deitada de bruços, abraçada ao travesseiro, também abriu os olhos. Afastou os longos fios de cabelo postiço esparsos pela cama, que lhe estorvavam a visão. Olhou para mim como se dissesse "bom dia" com o olhar. Um forte cheiro a cabeleireiros misturou-se ao aroma doce e azedo daquelas axilas suadas. Sorriu. Deixou cair e levantou devagarinho, as pálpebras, quando fez com os lábios uma careta de beijinho. Respondi-lhe com um piscar de olho e um sorriso contido. Ela riu-se, três gargalhadas floreadas, daquele riso sem sentido de amantes, projectando da boca há muito fechada, uma lufa seca e o doce vinagre do hálito.
Olhei para o telefone. Nenhuma chamada que desse indícios da notícia de promoção. A luz da janela dispersava-se na cortina quieta e reduzia nos sapatos que a Laurinda me descalçara, com carinho, há pouco. A graxa daqueles sapatos lembrava o projecto que eu tinha em manga, para quando fosse nomeado: elevar a engraxa à modalidade desportiva prioritária, dada a proliferação de talentos. Poderia também prosperar como modalidade artística e um dia, quem sabe, ser reconhecida como património cultural. Assim, passaria a haver workshops e exposições de engraxar sapatos, ao mesmo tempo que se realizariam jogos escolares, campeonatos províncias ou até nacionais, de engraxar.
— Assim como o samba no Brasil, engraxar vai passar a ser o nosso carnaval… — acrescentava Laurinda, a principal das minhas sucursais conjugais, demonstrando perspicácia e maturidade política.
— É, é — concordei, acariciando demoradamente a longa pêra grisalha que me confere estilo, muito importante para a projecção da minha imagem.
— Este país é de muitos recursos. Temos de saber aproveitar — Concluí, espreitando o telemóvel sempre à mão. Nenhuma chamada.
— Temos de explorar as nossas vocações naturais, cimentar a nossa identidade e progredir como nação — apimentou Laurinda, aproximando-se, ajeitando a cabeça no meu ombro e encaixando-se no meu abraço. Eu gostava de ouvi-la enquanto sentia as unhas postiças acariciarem-me os tufos crespos do peito.
— … e institucionalizar-se a engraxa. Mais do que arte ou desporto, será a nossa maneira de estar — senti o meu tom de voz a crescer, com confiança de quem já discursa num conselho de ministros. Laurinda abraçou-me, certamente encantada com o discurso.
— Vai se engraxar mais do que sapatos. Vai se engraxar pessoas. Ficaremos todos engraxados, bonitos… e implementaremos a engraxa ao nível dos municípios… as casas ganharão brilho… as cidades… e o país todo. E, num futuro próximo, exportar esses valores… e sermos uma referência desportiva mundial: campeões olímpicos da engraxa.
— E como é que a engraxa resolveria o problema das calamidades naturais? — Laurinda achegou-se mais. Agora passava as unhas pela minha barbicha. Agravei a voz, espreitei o telemóvel, e respondi:
— Engraxando os doadores para que doem cada vez mais. As calamidades são uma fonte de receita. Com mais doações resolveríamos até a crise.
— E os turistas viriam cá só para se deixar engraxar… Eh eh eh.
— Engraxado… quero dizer, engraçado, por sermos um país se engraxadores, até poderemos engraxar as nossas dores..
— … e esse pode ser o teu slogan, quando te candidatares: o candidato que engraxa dores.
— Eh eh eh… gosto do teu faro. Por isso se diz por trás de um grande homem há uma grande mulher.
— Mas eu não estou atrás, estou por cima de ti, amor — virou-se para mim. Primeiro com o olhar, a cabeça, depois o corpo todo fazia peso sobre mim.
— eh eh eh…
— hi hi hi…
— Agora vem cá. Há quanto tempo não engraxas?
— Hmmmm!!!
— Hi hi hi…
— Meu engraxador…
— Minha engraxatriz…
No telemóvel, nenhuma chamada…