Persiste, há séculos, uma tradição muda e insidiosa: a de revestir o fel com verniz de doçura. Na literatura, a miséria social é frequentemente adornada com metáforas fulgurantes e eufemismos dóceis. Essa complacência travestida de lirismo permite falar do sofrimento como se fosse possível polir a dor, maquilhar a injustiça e atenuar a violência.
Quando se fala de punições extrajudiciais, agressões sexuais, violência nas ruas ou dependências, o gesto comum é temperar o impacto, como se a verdade fosse demasiado intensa para a sensibilidade da comunidade. Mas quando a arte se acomoda nesse refúgio, renuncia, ainda que sem intenção, à sua função mais transformadora que é desvendar o manto das aparências e expor, sob plena evidência, a essência das realidades que se tenta ocultar.
Francisco Chuquela rompe com a tradição de suavizar o real e apresenta, em “Tchambalakati e Outras Crónicas”, uma visão directa, oferecendo ao leitor o contacto com a vida em sua forma mais autêntica e contundente.
Chuquela constrói as suas crónicas a partir de um olhar atento sobre o quotidiano, capaz de transfigurar acções banais em registos literários de relevância cultural e estética, porque, na verdade, “somos todos actores e actrizes neste cinema sociedade” (Alcione Thulani, in Grito o Mundo Gagueja). O autor alia economia verbal, mantendo um equilíbrio entre simplicidade e elaboração, e estruturando as narrativas com cadência oral.
A estrutura narrativa é, em grande parte, circular, ou seja, inicia-se com uma imagem concreta, desenvolve-se por gestos, pequenos diálogos, e encerra retomando o ponto de partida, agora impregnado de novos factos. Esse formato é evidente no capítulo que empresta o título a obra, “Tchambalakati”, que começa com as crianças a “encherem o quintal espaçoso, subiam e desciam às árvores pequenas e grandes” e termina com a partilha colectiva do prato.
A identidade estética da obra evidencia um realismo depurado, por vezes entremeado de lirismo, que permite caracterizar as cenas do dia a dia com clareza e precisão. Chuquela descreve objectos e acções tal como são, fazendo o uso escasso de metáforas ou outras figuras de linguagem. Por exemplo, a passagem “a vovó dirigiu-se para dentro da casa de caniço e zinco e de lá trouxe para a sombra da mangueira frondosa no centro do quintal a esteira velha que fizera parte de xiguiane no dia do seu lobolo”. Com isso, é mostrado, de forma directa, sem transformações poéticas, o ritmo real da vida.
A linguagem combina o português com termos vernaculares como “Dzukuta, Pandza e Xigubu”, desta forma, preservando a autenticidade cultural moçambicana.
No capítulo A “Miss” Alcoólatra, Francisco Chuquela conduz o leitor por uma odisseia de peripécias que começa com o retrato quase exótico de Sarita, mulher bela, dançante, alvo de todos os olhares, e termina numa cena voraz de degradação, onde uma fila de homens embriagados se dirige ao banheiro para usufruir do corpo vulnerável da protagonista, saindo “leves e satisfeitos” enquanto ajustam as fivelas aos cintos das calças.
A narrativa esmera-se na descrição estética da ascensão e queda da “miss”, mas omite qualquer acção que confronte ou denuncie o abuso implícito. O lirismo minimiza a gravidade do ocorrido, tornando natural o sofrimento da personagem e falhando em provocar a indignação necessária. Ademais, Sarita é extremamente erotizada, a crónica foca mais no corpo dela do que nos seus pensamentos ou na sua história de fundo.
A ausência de uma uma voz interior da personagem torna-a mais imagem do que pessoa. Essa escolha, portanto, enfraquece a crónica e compromete um dos papéis essenciais da literatura, que é confrontar e incomodar para gerar mudanças.
No entanto, o autor demonstra habilidade na construção de imagens vívidas e sensoriais, ao dar voz a personagens que habitam as margens da sociedade e ao revelar as consequências das tragédias urbanas, como se mostra no capítulo “Mbhoromani”, o personagem homónimo, ultrapassa a condição de mera figura narrativa e adquire uma presença quase lendária: é ladrão, violador, assassino, ou seja, uma sombra apocalíptica que segundo o texto, rivalizava apenas com Matsanga (pessoa considerada uma ameaça à ordem estabelecida), no imaginário popular.
A descrição da morte de Mbhoromani, amarrado com um “troféu de mabir ao pescoço”, queimado com petróleo, gritando enquanto a multidão celebrava, não é uma ode à justiça, mas sim uma demonstração da atrocidade social travestida de moralidade. A presença de nyangas (curandeiros) que invadem a cena com pancadas rituais e diagnósticos metafísicos, desloca o conflito da esfera da justiça para a do oculto, onde os demónios não são julgados, mas exorcizados.
Ao término deste “Tchambalakati e Outras Crónicas” ainda que misturado com o sabor da criminalidade, superstição, o linchamento, a violação sexual e outras dores do quotidiano, o gosto do chá permanece para fortalecer a vontade de seguir tomando, aprendendo e transformando, porque é nesse líquido quente que reside a força da verdade cultural que a literatura tem o poder de despertar.

