Não existe uma consonância possível entre a poesia e o vazio. Não podem rimar porque a poesia serve para preencher os vazios. Mesmo que a poesia, insistentemente, fale do vazio, o seu último cargo é preenchê-lo. Agora, tentar a mesma harmonização com a anatomia – e todos os seus derivados – tornou-se comum para a poesia nacional. E o mais comum é «ler poetas» que descrevem a mulher e suas qualidades redondas (e.g., aqui cabe muito bem o Eduardo White). Inédito é «ler uma poetisa» que fale dos músculos duros e as canoas do seu amado (e.g., quiçá cabe nesta antonomásia literária, a «multi-irreverente» trovadora Énia Lipanga). Essa tentativa deixou de ser vã, pois abre horizontes para construção de um conhecimento sensível possibilitando uma melhor compreensão do mundo e de nós mesmos. É aqui onde se situa o livro: «Anatomia do vazio» (Sanjane, 20025).
Eusébio Sanjane, minimiza as explosões de expressividade, com os movimentos das coisas indeterminadas, sempre por se fazer e se refazer a cada instante. Um exemplo: «Você que atravessa as noites em silêncio, / que toca as paredes frágeis da memória, você que escuta os meus murmúrios / […] / salve-me» (poema «O grito das sombras», p. 11). Eis aqui um rebuço de pedido de socorro que o poeta mostra para o mundo de forma mais sensível a partir do que nós somos e do que poderemos ser. Até agora, aparentemente, não vemos nenhuma relação entre a poesia e essa anatomia que se faz no vazio. Portanto, podemos dar mais um passo onde percebemos a expressão preceptiva na metafísica da carne. Por meio do estado poético, vemos um enlaçar de algumas partes do corpo à poesia, e ambos se tornam sujeitos para uma existência una, sempre em movimento: «cegos os olhos escalam a escuridão, / também memórias ainda não nascidas. / é sempre o mesmo ciclo: / começo / quase-vida, despedida» (poema «A Pele do infinito», p. 13). Parte do corpo (e.g., olhos) é movida pela expressão criativa e se realiza na experiência sensível (e.g., escalar a escuridão para se encaixar no período da vida). Aqui, Sanjane nos oferece uma fenomenologia de parte dessa anatomia, do sensível que é profundamente marcada pelo encontro do olhar com a significação. Um processo em que não há separação entre expressão e o expresso, entre o acto e a significação de fazer parte de um vazio. Ou seja, quem é cego (parte da deficiência da nossa anatomia) não vê, óbvio, e para preencher esse vácuo de não enxergar escala montanhas da escuridão. Se nesta etapa ainda flutua a incerteza da conexão entre a poesia e essa anatomia que se faz no desocupado, podemos avançar para o passo derradeiro. Ele é nítido no poema que oferece o título ao livro («Anatomia do vazio», p. 13).
O poema «Anatomia do vazio» (Sanjane, 2025, pp.15-16) é composto por quatro partes: I (duas estrofes de 7 versos & 4 versos), II (duas estrofes de 5 versos, cada), III (duas estrofes de 4 versos, cada) e IV (duas estrofes de 4 versos & 5 versos). Sem nos agarrarmos à numerologia poética podemos compreender como o poeta atesta e preenche o oco anatómico. Com ousadia se aproximarmos os primeiros versos de cada parte teremos a resposta. Dessa soma ficamos com a seguinte versificação: «No princípio não havia palavras, / [No] ponto onde o vazio pulsa, / O que é o vazio senão um desejo inverso, / [De] uma dor que mora na falta» (juncão dos versos inicias das fracções do poema «Anatomia do vazio», Sanjane, 2025, pp. 15-16). Credencio, que é aqui onde reside o epicentro do livro. Não pelo facto de ser o poema que é homónimo, com alguma extensão, ao título. No entanto, por oferecer uma profundidade de uma busca que é imersa no mundo ideal das ideias e das nossas vidas. Não é o poema que responde ao vago. É a transcendência, por meio da metafísica do desejo, onde cada experiência vivida se transforma e se expande revelando novos sentidos e significados (e.g., «o que é o vazio senão um desejo inverso»).
Sem máculas, estamos cônscias que hodiernamente vivemos e reclamamos dos diversos vazios das nossas anatomias. O vazio da moral por isso nos completámos com xivhotxongwas (que são hostis a nossa espiritualidade). O vazio de preencher o cabelo com cabelo dos outros. O vazio de clarear a pele para ter a epiderme do outro. O vazio de não aceitar a minha anatomia e tomar anabolizantes para ter a fitotomia do Schwarzenegger. [Abstenho-me de falar do vazio de ser nação. Vazio da moçambicanidade]. Vivemos um espetáculo do preenchimento da anatomia onde nos custa perceber que o corpo pode ser tomado pela estesia de um oco que não tem volta. Pelo estranhamento, pelo silêncio e pela fluidez do movimento da vida. Um vazio que depois de preenchido desaba no «primeiro sopro» (Sanjane, 2025, p. 32).
Para cerrar essa transitória leitura sobre «Anatomia do vazio» (Sanjane, 2025) torna-se injuntivo concordar que por mais que haja uma plenitude do corpo em movimento e que busca um auto-preechiemnto, o estado poético da criação de Sanjane se ocultará no silêncio que reside no intervalo dos gestos que fazemos quando fingimos não aceitar a verdadeira essência dos nossos corpos. A anatomia «desse vazio», é sobre as ações tácitas, do mover-se com compromisso e determinação para o que não foi estabelecido. A anatomia «desse vazio» é sobre o nosso corpo. Como ele revela-se e se oculta ao mesmo tempo. É sobre a aurora espetacular que perdemos por ocultar-se à nossa essência, que se tornou repleto de imprevisibilidade e jornadeia com a mediocridade que exibimos porque nos tornamos «museu das coisas invisíveis» (Sanjane, 2025, p. 42). Na palavra poética o conteúdo nunca se mostra como se espera. A abundância ganha e incorpora o significado quando, em vez de copiar o outrem, deixamo-nos fazer e refazer por aquilo que é endogénico a nossa estirpe. De contrário, seguiremos vazios e não teremos, sempre, um Sanjane para nos chamar ao preenchimento essencial.
P.S.: há quem diga que o erro do poeta é fazer um espaçamento assustador de uma obra para outra. E, contrariamente, há quem diga que os intervalos são necessários. Sanjane vacila entre esses dois ciclos. Mas, como sempre existe um, «mas», Eusébio Sanjane protela o risco dos enormes intervalos: «Rosas e lágrimas» (Ndjira, 2006), «Frenesim: poesia em pétala de lume» (Ndjira, 2013) e «Anatomia do Vazio» (Estação-8, 2025). Bom, para não deixar passar em branco: o «frenesim» passou pelas minhas mãos na minha fase de editor-neófito (Ndjira).