No dia 19 de Outubro de 1986, um grupo de teatro quis anunciar o seu surgimento em Moçambique. No entanto, nesse mesmo dia o país perdeu o seu primeiro Presidente da República e várias pessoas que com ele seguiam no Tupolov 134, que regressava de uma visita de Estado na Zâmbia. Devido à tragédia de Mbuzine, o grupo teatral só conseguiu anunciar-se algumas semanas depois. Já era mês de Novembro. Mas como tudo começou?
Há mais de 33 anos, Manuela Soeiro comprou o Teatro Avenida. O grande objectivo da encenadora e produtora, na altura, foi o de criar um grupo profissional de teatro com qualidade. Na véspera da viagem de Samora Machel para Zâmbia, Manuela Soeiro e Gulamo Khan passaram a noite a conversar. Lá mais para o fim da noite, a encenadora disse ao jornalista que iria anunciar o surgimento do seu grupo teatral. Mas faltava um nome. Então, Khan, que morreu no mesmo acidente de Mbuzine, sugeriu que fosse Mutumbela Gogo, inspirado nas cancões populares que lá para os subúrbios de Maputo se cantavam na época do carnaval. Sem imaginar que não voltaria a ver o jornalista, Manuela Soeiro aceitou o nome e assim foi baptizado o grupo teatral mais antigo do país.
Nesse princípio, com a Manuela estiveram João Manja e Victor Raposo. Com o tempo, foram surgindo actores recrutados para se profissionalizar no Mutumbela, como Evaristo Abreu, Adelino Branquinho, Lucrécia Paco ou Graça Silva. Nada foi fácil. Para manter o grupo que agora completa 33 anos de existência o grupo teve de ultrapassar vários obstáculos. Numa época de crise, sem dinheiro e tão-pouco patrocínio, Manuela Soeiro abriu uma padaria e também passou a confeccionar alimentos para que conseguisse pagar os actores.
Ao longo dos anos, Mutumbela Gogo fez teatro debaixo dos cajueiros. Nas viagens ao estrangeiro, os actores dormiram nos no chão dos teatros onde exibiram peças, já que não podiam pagar por um hotel. Entre carências e adversidades, o grupo foi-se consolidando, procurando elaborar peças não óbvias.
Como forma de assinalar os 33 anos de existência, Mutumbela Gogo levou ao palco do Teatro Avenida, esta quarta-feira, a peça Xicalamidadi, que, igualmente, encerrou o Festival de Teatro Ahoje é Ahoje. Na verdade, Xicalamidadi é um espectáculo apresentado há 19 anos, a propósito das cheias de 2000 que afectaram Moçambique. Porque o país enfrentou, este ano, duas grandes calamidades naturais (os ciclones Idai, no Centro, e Kenneth, no Norte), a peça foi recuperada para retratar o drama dos que perderam tudo, mesmo o que não tinham.
Na visão do Mutumbela Gogo, Xicalamidadi é uma história de esperança e de alegria. “Quando decidimos trabalhar o tema das cheias em teatro, criámos uma história e algumas personagens. Para vestir essas personagens de maior profundidade decidimos ir aos lugares que foram palco da tragédia. Recolhemos depoimentos tristes de quem perdeu tudo, mas recolhemos tambe?m canc?o?es que cantaram em cima das a?rvores para na?o adormecer. Recolhemos pretextos para fazer a alegria e recolhemos enfim, lic?o?es de dignidade. Essa dignidade de quem sabe que pode contar com os outros. Mas sobretudo, de quem por si mesmo se ergue do cha?o e volta a caminhar, para começar a vida uma outra vez”, realça o grupo.
Passados tantos anos a remar contra maré, a pretensão de Manuela Soeiro é deixar um legado para as próximas gerações de actores: “Por isso estou a construir uma escola de teatro com um museu, cujo objectivo é preparar os actores a saberem mais coisas além da arte de representação. Para que um actor seja um bom actor, tem de aprender tantas outras coisas à sua volta. Lutando sempre para não desistir”, afirmou Manuela Soeiro, para quem o teatro é a possibilidade de poder dar às pessoas a possibilidade de sentir um pouco de si e do país onde vivem. “O tetro é como se fosse uma arma. Bem usada ajuda na formação e no crescimento da pessoa”.
Um dos actores mais consagrados do Mutubela Gogo, Adelino Branquinho, também não deixa dúvidas de que a continuidade do grupo resulta de muita perseverança. Caso contrário, não teriam conseguido resistir a tantas intempéries, como a de não conseguir dinheiro para criar peças. “Vocês não imaginam como é tão difícil para um actor querer apresentar espectáculos teatrais e não poder porque falta financiamento. Essa é das coisas mais difíceis que temos de suportar”. Então, Branquinho deixa uma recomendação: “O teatro tem força. É preciso que se apoiem os actores na apresentação das histórias deste país”.
FESTIVAL AHOJE É AHOJE
Entre várias actividades, apresentação de peças teatrais e de livros, o Festival Ahoje é Ahoje homenageou, nesta edição, a Melhor Actriz da Europa 2019, Maria do Céu Guerra. A portuguesa foi distinguida “Patrona” do evento do Mutumbela Gogo. A razão da distinção é referida numa nota do grupo: Maria do Céu Guerra “tem sido uma permanente cidadã cultural a quem o teatro moçambicano deve gratidão. Pioneira, desde a independência, na formação de actores em Moçambique com o seu grupo A Barraca, que fundou em 1976. A porta do seu teatro, em Lisboa, tem recebido o teatro e as artes moçambicanas. Aos 75 anos, é uma das mais extraordinárias actrizes do teatro português e a alma da companhia teatral independente A Barraca”.
Do mesmo modo, Mutumbela Gogo quis com o festival manifestar gratidão às actrizes Graça Silva (falecida) e Lucrécia Paco. “Num ano em que se celebram os 33 anos do Mutumbela Gogo, um momento também especial para demonstrar um tributo de gratidão a Graça Silva, actriz que ocupará sempre um lugar único na história do nosso grupo, e Lucrécia Paco, actriz que, com seu talento, é uma referência inigualável na trajectória do Mutumbela Gogo, tendo sido um elemento preponderante na primeira edição do Ahoje é Ahoje”.