Rasgam-se os corações, varem-se as palavras e enchem-se as almas diante do embate entre cores e letras. As obras de Sebastião Coana não repousam; elas são fragmentos de um discurso visceral, onde as cores gritam, recontam histórias que a memória tenta esquecer. Há algo de violento na forma como as pinceladas cortam o espaço, como se as próprias telas fossem um corpo marcado pelo tempo,
cicatrizando na retina do espectador.
Os olhos percorrem os contornos, mas não encontram descanso. Cada tonalidade estremece como um resquício das vozes que Paulina Chiziane eterniza em sua literatura — vozes de “mulheres sem vozes”, de espíritos inquietos, de povos que se recusam a desaparecer. A própria percepção do observador se vê alterada diante dessa sobreposição de histórias e imagens, como “à força de perscrutar as sombras a retina falseada as imagens, alargando-as, enchendo com ellas os ares”, nas palavras de Fialho D’Almeida em A Cidade do Vício.
Neste cenário, não há mera contemplação. Há uma urgência que trespassa cada traço, uma pulsação indomável que desafia o olhar a decifrar segredos encobertos por tinta espessa. É como se o tempo houvesse sido comprimido nas telas, transformando cada fenda, cada explosão cromática, numa fissura por onde surgem histórias de dor, resistência e pertença.
Ao atravessar esse território onde as letras se dissolvem em tintas e as tintas se transformam em narrativas, o espectador não sai ileso. A exposição Diálogo entre Letras e Cores não apenas propõe uma conversa entre imagem e palavra, trata-se de um pacto sensorial em que a arte adentra a pele e se expande como uma ferida aberta.
A textura consistente dos quadros de Sebastião Coana reforça a fisicalidade do gesto artístico. O uso expressivo da matéria pictórica gera volumes que parecem pulsar, deslocando a pintura do domínio da superfície bidimensional para uma presença quase corpórea.
Há nessa fusão entre representação e essência, uma tentativa de capturar aquilo que persiste para além das telas. Não por acaso, Luís de Camões em Os Lusíadas escreveu “ali tinha em retrato afigurada, do alto e Santo Espirito a pintura”. Assim como na epopeia camoniana em que a pintura se torna reflexo do sagrado, a obra de Coana não se limita à cor e à forma.
Dentro desse universo, há figuras que se insinuam sem se definirem completamente, rostos desfeitos, corpos entrecortados por manchas e riscos, olhares que emergem simplesmente para se dissolverem na atéria cromática – tudo sugere uma identidade em trânsito, uma batalha incessante entre a visibilidade e o apagamento.
As cores, em sua fúria desordenada, funcionam como um sistema representativo de resistência. Os vermelhos e laranjas incandescentes ressaltam fogo e sangue, mas também vitalidade e transformação. O negro, que por vezes parece engolir as formas, remete à escuridão da memória colectiva, às lacunas históricas e aos silêncios impostos. No entanto, mesmo nas zonas mais sombrias, há sempre um vestígio de luz, uma linha que resiste, uma cor que se infiltra – uma metáfora para a persistência das narrativas que recusam ser esquecidas.
Se há algo de literário na pintura de Coana, não é apenas pela proximidade com os temas de Paulina Chiziane, mas pela maneira como suas telas operam como páginas abertas, esperando ser lidas.
A sua técnica manifesta um texto escrito em dimensões, onde cada nova aplicação de tinta é uma reescrita, uma contestação da versão anterior, uma tentativa de dar corpo ao indizível. Com efeito, a arte não se contenta em representar; ela interroga e provoca.
Logo na entrada da galeria, Mãos Desacorrentadas (100 x150cm, acrílico sobre tela texturada, 2025) se impõe como um apelo ao olhar e à reflexão. As figuras emergem de uma textura saturada, quase orgânica, onde cores quentes e opostas acentuam a força do gesto representado.
As mãos, protagonistas, se entrelaçam num movimento que sugere libertação, cuidado e reconstrução. O olhar da imagem inferior transmite uma gravidade inefável, enquanto a presença superior parece desintegrar amarras invisíveis, como se refizesse um caminho há muito traçado.
A obra não se restringe a representar um instante, entretanto trás a tona um processo, ou seja, um deslocamento entre o que foi e o que se torna. A ausência das correntes é tão expressiva quanto sua possível existência anterior, e o toque das mãos sobre o cabelo sugere mais do que um simples acto cotidiano: há ali uma reafirmação de identidade, uma reconfiguração do ser.
Coana, mais uma vez, trabalha com tonalidades que vão além da tinta, oferecendo ao espectador um espaço para sentir e reinterpretar. Mãos Desacorrentadas abre-se como um território onde cada olhar encontrará sua própria narrativa de liberdade.
Liberdade essa, que, agora se materializa em uma explosão de movimento e textura em( 100 x 120cm, óleo s/tela textura, 2025).
A composição lateja com energia, onde os desenhos parecem romper os estratos que as aprisionam, gerando um impacto de desencontro e premência. A combinação de nuances vivas, entre o laranja ardente e os azuis discordantes, intensifica a tensão entre corpo e espaço, como se os personagens lutassem contra uma barreira, ou contra si mesmos.
A textura não é apenas um elemento estético, mas parte essencial da narrativa: ela sobrepõe e obscurece, sugerindo que a liberdade não é apenas um ideal, mas um processo de ruptura.
No entanto, essa mesma materialidade pode ser lida como uma armadilha estética.
A sobrecarga de textura e a sobreposição de formas podem, em certos momentos, obscurecer a nitidez da mensagem, tornando a cena fragmentada e menos acessível a leituras directas.
Ainda assim, a obra Liberdade reafirma o compromisso de Coana com uma arte que não apenas se vê, mas se sente. A obra, convida à acção, à quebra de padrões, à redefinição do próprio conceito de liberdade.
Diante dessas obras e mais, o olhar do visitante é constantemente desafiado. Não há respostas prontas, apenas vestígios que pedem para ser lidos, indícios de histórias que se moldam conforme a sensibilidade de quem observa. Mais do que contemplação, há um chamado à escuta, à releitura de um passado que ainda se escreve.
Até o dia 09 de Fevereiro, na Galeria do Porto de Maputo, permanece a chance de atravessar esse espaço onde a imagem e a memória se entrelaçam. A experiência não se encerra na visita; ela se conduz adiante, reverberando em cada um que se permite sentir.