O País – A verdade como notícia

Ungulani ba ka Khosa o interpelador da História

Numa altura em que o escritor Ungulani Ba Ka Khosa completa 60 anos de idade e 30 de careira literária, o que lhe valeu duas homenagens, uma pela SOICO e outra pela Universidade Pedagógica (UP), a professora e ensaísta Fátima Mendonça, da Universidade Eduardo Mondlane, residente em Portugal, publica, em exclusivo neste órgão, um texto inédito sobre o autor. A seguir, o estudo completo.  

Fátima Mendonça
Universidade Eduardo Mondlane
CLEPUL-Universidade de Lisboa

Nasci às 0.45 do dia 1 de Agosto de 1957 em Inhaminga, Sofala. O resto não interessa, pois segundo Roland Barthes.´´só há biografia enquanto a vida é improdutiva´´.Desde que produzo, desde que escrevo, é o próprio texto que se apropria (felizmente) do meu tempo narrativo´´Ungulani ba ka Khosa in Orgia dos Loucos.

Introdução

UNGULANI BA KA KHOSA, nome literário de Francisco Esaú Cossa, pertence à geração de jovens, conhecida como Geração do 8 de Março, que mercê de uma directiva do Presidente Samora Machel, ingressaram a partir de 1977 na Universidade Eduardo Mondlane a fim de aí completarem, de forma faseada, cursos de formação de professores nas várias áreas de ensino. Francisco Esaú Cossa formar-se-ia então na recém-criada Faculdade de Educação em 1978 e 1980 como professor de História e Geografia, tendo sido colocado na província do Niassa. De regresso a Maputo em 1982 ingressou no Ministério da Cultura. Posteriormente exerceu o cargo de director adjunto do Instituto Nacional de Cinema e Audiovisual de Moçambique, sendo actualmente director do Instituto Nacional do Livro e do Disco. Em 2003 Ungulani ba ka Khosa foi homenageado pela CPLP- Comunidade dos Países de Língua Portuguesa, e recebeu o Prémio José Craveirinha, em 2007.

O seu nome tsonga, Ungulani ba ka Khosa, seria o que viria a adoptar ao publicar Ualalapi, em 1987, dando sequência à publicação em 1982, no Diário de Moçambique na Beira, de um conto intitulado Dirce minha deusa nossa deusa .

Em 1988 Ualalapi o recebeu o Prémio Gazeta de Ficção Narrativa e, em 1991, o Prémio nacional de ficção narrativa, instituido pela AEMO, em ex-aequo com Vozes Anoitecidas de Mia Couto. Consta da lista dos cem melhores livros africanos do século XX conjuntamente com Nós matámos o cão tinhoso de Luis Bernardo Honwana e Terra sonâmbula de Mia Couto.

Para além da sua actividade como ficcionista, Ungulani ba ka Khosa tem participado activamente em debates na Imprensa escrita, com a publicação regular de crónicas em vários jornais. O estilo provocatório e irreverente com que enfrenta os variados problemas que aborda tornaram-no uma referência nacional e consagraram a sua popularidade, com destaque para as camadas jovens urbanas, o que é visível na afluência aos lançamentos dos seus livros.

Outro aspecto que marca a trajectória de Ungulani ba ka Khosa é o seu carácter interventivo no seio da Associação dos Escritores Moçambicanos (AEMO). Criada em 1982, com vocação para promover o contacto entre escritores, a AEMO despoletou uma nova dinâmica na vida literária do país, a par do activismo das páginas literárias e a criação de prémios e concursos literário, de que resultou o surgimento de uma nova geração de escritores. Desta, salientou-se imediatamente Ungulani ba ka Khosa que, em 1984, foi co-fundador da revista Charrua, com Eduardo White, Helder Muteia, Juvenal Bucuane e Pedro Chissano, a que se juntaram Tomás Vimaró e o artista plástico Ídasse Tembe, com apoio do então secretário-geral Rui Nogar e patrocínio oficial da AEMO. Embora tivessem surgido outras iniciativas do mesmo tipo, nomeadamente Forja da Brigada Literária João Dias e ECO, foi a energia dos activistas de Charrua que se sobrepôs até à própria dinâmica da AEMO. A partir dos anos 90, a geração de escritores, que tinha dado corpo à revista Charrua tomou conta dos destinos da AEMO, com a eleição de Pedro Chissano para Secretário-Geral, situação que prevaleceu até 2007, com Armando Artur e Juvenal Bucuane. A partir de 2007 a composição da direcção da AEMO mudou substancialmente com a entrada de Jorge de Oliveira (Jurista e coordenador nos anos 90 da Gazeta de Artes e Letras da Tempo) como Secretário Geral e a inclusão de novos elementos oriundos dos grupos surgidos nos finais dos anos 90.

Noutro lugar tive a oportunidade de equacionar a possibilidade de o percurso de alguns dos elementos de Charrua, entretanto guindados a funções de Estado, poder vir a exercer influência quer na dinâmica editorial quer na promoção da literatura moçambicana. Justificava-o as nomeações recentes do poeta Armando Artur para Ministro da Cultura, de Ungulani ba ka Khosa para Director do Instituto Nacional do Livro e do Disco e Marcelo Panguane para editor da revista Proler do Fundo Bibliográfico de Língua Portuguesa. Tudo parecia indicar que a energia e o papel dos charrueiros não se esgotara com a sua intervenção na AEMO.

Mas o regresso recente à AEMO de Ungulani ba ka Khosa (eleito como Secretário-Geral em Março de 2013) e de alguns dos seus companheiros de estrada revela a surpreendente ligação afectiva a esse espaço simbólico que une esta geração notável de escritores.

1. O surgimento no início da década de 80 de Ungulani ba ka Khosa e Izaac Zita (este precocemente desaparecido em 1983 aos 22 anos e publicado em livro póstumo, (Os Molwenes, 1988), com percursos semelhantes (ambos frequentaram os Cursos de Formação de Professores, tendo começado a leccionar muito jovens no Norte de Moçambique, ambos fizeram a sua aparição como ficionistas na Imprensa) fazia antever para a ficção narrativa moçambicana um espaço idêntico ao que a poesia já ocupava. De facto ambos se mostravam possuidores de uma notável capacidade de narrar utilizando estratégias discursivas assentes na ironia que, embora com efeitos diferentes, ia ao encontro da rebeldia da sua geração. Em paralelo, Mia Couto, já conhecido como poeta e diferente percurso de vida, viria com Vozes Anoitecidas em 1986 completar a tríade em que assentariam as tendências da nova narrativa moçambicana, que a passaram a colocar em pé de igualdade com a poesia até então dominante.

Ualalapi, publicado em 1987 constituiu um fenómeno de recepção em Moçambique (à semelhança do que aconteceu com Nós matámos o cão tinhoso de Luis Bernardo Honwana), que o impuseram como texto canónico da narrativa moçambicana.

A narrativa, subdivide-se em seis narrativas curtas que, embora se estruturem como independentes, conduzem a uma leitura global justificada pelo facto de se desenvolver a partir de episódios históricos relacionados com a ascenção e queda de N´Gungunhane, imperador de Gaza, derrotado por Mouzinho de Albuquerque e posteriormente exilado nos Açores, onde faleceu. Os numerosos estudos dedicados a esta obra têm destacado o seu caracter anti-épico e questionador da História. Ana Mafalda Leite formula esta questão argumentando tratar-se da desmitificação da história de N´gungunhane, fornecida quer pela corrente colonial, quer pela revolucionária pós- independência, o que ´´convida a reflectir pela validade de uma e outra, das fontes escritas e orais, e daquelas que o narrador convoca no seu próprio discurso.´´(Leite, 1998:87-88). Outro aspecto que os estudos sobre Ualalapi destacam é a sua relação com o modelo da narativa fantástica latino-americana. Gilberto Matusse (Afolaby, 2010: 99-103) debruça-se sobre esta questão defendendo que essa aproximação pode ser interpretada como uma ruptura relativamente a um cânone europeu já que essa é a característica ¬ universalmete aceite ¬ das literaturas latino-americanas. Assim sendo, haveria em Ualalapi a busca de um modelo capaz de reflectir uma identidade moçambicana diferente da europeia, i.e., diferente da portuguesa. Matusse também sugere que a adopção do modelo latino-americano (já consagrado) legitima a utilização da técnica literária de incorporação da imaginação mitologica e simbólica das sociedades africanas tradicionais. Outra leitura possível, que constitui ainda hoje matéria de sedução, é a possibilidade que a carga disfórica do final do texto consente (através da profecia de N´gungunhane) de revisitar a história de Moçambique até 1986 (regresso dos restos mortais de Ngungunhane como herói a Moçambique e morte de Samora Machel) com todos os paralelismos possíveis deixados em aberto.

2. O caracter de novidade de Ualalapi, criou alguma expectativa relativamente a Orgia dos Loucos colectânea de 9 narrativas publicada em 1990, de que destaco A solidão do senhor Matias. As duas epígrafes que antecedem as narrativas, a felicidade é frágil e quando não a destroem os homens ou as circunstâncias, ameaçam-nas os fantasmas (Marguerite Yourcenar) e no meu país/a única forma de liberdade permitida/ é a loucura (Jorge Viegas) faziam prever a continuidade da tonalidade disfórica anunciada em Ualalapi. Do mesmo modo a dedicatória autoral A todos nós vítimas da nossa condição, colocava a leitura numa temporalidade vivida, e expressa com o mesmo tipo de ambiguidade presente em Ualalapi. Como pretende Fernanda Afonso, na esteira de Jean Marc Moura, estas mensagens paratextuais, visíveis em outros textos moçambicanos, visam não só conciliação de universos simbólicos diferentes (Afonso, 2004:304) como manifestam o propósito de reclamarar alteridade, inaugurando uma modalidade de narração.

Em suma, uma das particularidades, que nós constatamos em todas as antologias de contos é a enunciação de um vasto discurso paratextual a lembrar insistentemente a presença do autor: desvela as suas intenções, os seus modelos literários, enuncia asua estética, reindivica uma prática literária militante. No conjunto os textos preliminares são como linhas simétricas que permitem à obra elaborar-se polifonicamente segundo uma estrutura eficaz, que a torna espelho do contexto histórico (Afonso, 2004:307).

As personagens que circulam .nas diferentes narrativas incluidas em Orgia dos Loucos , sejam rurais ou urbanas, evoluem sempre em percursos descendentes que, articulados com os vários índices disseminados, encaminham o acto de ler para a identificação com experiências vividas, portanto históricas. No entanto as variadas modalidades discursivas utilizadas, frase curta sincopada em alguns casos, enumerações caóticas noutros, ou diálogos construidos sobre fórmulas sentenciosas traduzidas de línguas bantas moçambicanas, incorporam nos textos significações instáveis. O próprio autor reconhece serem, estas práticas diversificadas, oriundas de uma necessidade de encontrar um estilo próprio, não se furtando a revelar em entrevistas os seus modelos de escrita e identificação com autores como Ernest Hemingway, William Faulkner, Borges ou Gabriel Garcia Marquez. (Laban, 1998:1065) Chabal, 1994:311).

Influências literárias? Numa primeira fase, para os primeiros textos o autor que comecei a ler foi o Hemingway, para o conto, para a estrutura do conto. Mas depois abandonei, porque nos últimos contos eu comecei a sentir a nacessidade de me inserir na nossa identidade cultural. Tentei pegar mais no conto fantástico. Descer à nossa maneira de pensar, pegar nisso, mas experimentar um pouco a experiência latino-americana, porque acho que os latino-americanos têm uma certa técnica que me parece possível integrar na nossa mentalidade. Os latino-americanos pegam também na oralidade, e dão-lhe uma estrutura técnica mais dinâmica. Autores como o Garcia Marquez, textos dispersos do Borges. (Chabal:311).

3. Com A Solidão do senhor Matias, Ungulani ba ka Khosa aflora um espaço temático que volta a explorar no romance Choriro (2011) e que aparentemente sempre o interessou isto é, os fenómenos aculturativos em dois sentidos: tanto o da assimilação do africano ao europeu como deste ao africano. Em entrevista a Michel Laban (Laban, 1998:1066) refere, a propósito das primeiras ideias que lhe surgiram para escrever uma novela:
Primeiro fui descobrir que em 1860-70, no Reino do Barué, apareceu um primeiro ministro americano, branco que se aculturou ¬ vestia aquelas tangas todas ¬ e o rei era um assimilado que se vestia à branco ¬ com chapéu e bengala ¬ (…) Li isso no livro do Isaacman. (…) era interessante estudar este fenómeno da cultura que não tem nada a ver com a cor, porque há esta possibilidade e esta permissividade de a pessoa poder assimilar este aspecto.

Partindo deste foco temático A solidão do senhor Matias estrutura-se sobre o percurso do protagonista Matias, decréptico colono português, na interacção com uma memória histórica que convoca cronologicamente sucessivos marcos da História de Moçambique: colonização, independência, guerra civil.

A divisão do texto em partes numeradas de I a IV contribui para que a leitura se processe de forma a que se recuperem uma macronarrativa (História) onde se encaixam duas micronarrativas alternadas:protagonizadas por Matias, ora com a mulher morta (sob a forma de analapeses), ora com o empregado João. Este, ao acompanhar Matias na sua deambulação pela propriedade abandonada, actua na diegese como testemunha quasi silenciosa da decadência do mundo despedaçado do patrão, do qual restam apenas farrapos que a sua memória recupera e inscreve na história pessoal de Matias:
(…) branco que herdara as propriedades do pai ainda novo e que tinha como diversão predilecta a mania de tirar a virgindade das moças das aldeias em troca do sal amontoado num armazém onde as fornicava de pé e deitado, e onde uma delas teve o primeiro mulato das redondezas que resolveu emigrar, anos depois, para a distante cidade (…)

Enquanto o percurso individual de Matias é construido com longas descrições e recurso a analepses fornecidas pela memória de João, os acontecimentos históricos insinuam-se por meio de índices disseminados ao longo da narrativa. A tensão que se produz entre estes dois níveis da narração faz emergir a categoria Tempo como elemento estruturante da narrativa, funcionando não apenas como um marcador da memória colectiva ou individual mas, e não menos relevante, como um operador das transformações por que passa a personagem Matias em contraste com a estática indiferença atingida por João o subalterno-testemunha. Tempo que se apresenta em camadas sobrepostas, impregnando a narrativa de fragmentos de memória por meio de um narração distanciada e configurada em modo dramático. Parece-me por isso justificada uma leitura que incida sobre a forma como esse Tempo se articula com as personagens e o espaço físico onde decorre a acção.

O Tempo da colonização sintetizado na parte I através de índices como galeras  remotas e tempo da pacificação formula uma espécie de tese cuja ambíguidade impede uma leitura linear. A referência aos espíritos petrificados dos brancos, da desordem e da mentira, incapazes de susterem o avanço dos deuses africanos pode de facto ser lida retroactivmente tanto como figura metafórica (metáfora da independência) como sinédoque de um fenómeno geral aculturativo representado pela personagem Matias tal como é descrito na sua relação com o universo dos curandeiros (das palhotas das serpentes mortas e vivas)e que determinará o seu destino, profetizado na parte II por sua mulher africana, agora morta:
Não tens salvação Matias és preto e por mais que escarres, por mais que insultes estes pretos, não voltarás nunca à tua terra com a riqueza aqui tirada, porque há muito que foi dito que morrerás nestas terras. E a tua sepultura estará ao lado dum preto.(…).

A história de Matias, pela inserção de elementos que suscitam analogias, possibilita em simultâneo a representação do Tempo da colonização como um universo extinto pela voragem de um novo Tempo, o da troca de bandeiras. Desse Tempo anterior permanece como um rasto um velho colono consumindo todo o vinho que resta na casa deserta e que o vomita ao ritmo do único disco de fado (de Amália Rodrigues) existente, clichês simbólicos que (de)compõem a sua diluida identidade.

Contrariamente a Matias, João não tem história própria. A sua identidade é forjada pela função de testemunha que desempenha na diegese e por uma subalternidade difusa que o leva a acompanhar o patrão, pela propriedade devastada, obedecendo de forma mecânica a ordens que se repetem, num silêncio que quase lhe retira humanidade. Estas características colocam João quer no interior da focalização, como duplo do narrador, quer como destinador das acções de Matias, observando-as sem perplexidade, sem interrogações, sem dó.
O novo Tempo (o da independência) que sucede ao extinto Tempo da colonização, é vivido de forma indiferente quer por Matias o patrão, quer por João o empregado, nivelados, não por quaisquer transformações sociais motivadas pela violência que levou à destruição da propriedade, mas pela inércia e solidão que compartilham.
(…) trabalhadores eufóricos que arrancavam o milho a florescer, a mandioca a brotar e o amendoim a rebentar. E como se isso não bastasse, sabotavam as máquinas que davam pelo nome de tractores sob o olhar impassível do patrão que deixava os pretos, que outrora se arrojavam a seus pés, bradarem pelo kululeko, nome que a independência leva, e estragarem tudo excepto as casas, o armazém, a loja e o restaurante porque os que se aproximaram do cimento com os machados e as tochas e a fúria assassina tiveram uma morte instantânea e inexplicável aos olhos do vulgo, afora os curandeiros (…)
Como personagens fora da moldura deste quadro, Matias e João fundem-se no espaço de desolação dominado por uma natureza anárquica onde animais repelentes e plantas desordenadas substituem a antiga ordem, de que sobra, como relíquia arqueológica o  fantasmagórico e simbólico cimento, impenetrável mas inútil, das casas. A simbologia do cimento como refúgio dos espíritos dos brancos, enquadrada num campo de racionalidade assumida pelo narrador e integrada no imaginário em que as personagens estão mergulhadas, reforça o questionamento identitário subjacente a todo otexto.

Imersa num cenário apocalíptico A solidão do senhor Matias clarifica a sugestão lançada pela citação de Marguerite Yourcenar numa das epígrafes. a felicidade é frágil e quando não a destroem os homens ou as circunstâncias, ameaçam-nas os fantasmas Contida nesta citação ficam as possibilidades alegóricas permitidas por possíveis analogias entre os termos da alegoria. Felicidade-destruição-circunstâncias e fantasmas (re)aparecem pois reconstituidos, na trama narrativa, legitimando o carácter disfórico do percurso das personagens.

As profecias da mulher, incluindo a da sua própria morte, (no dia em que os pretos como eu entrarem por estas terras com as armas em riste) e a de Matias, (recuperadas pela memória deste), fazem inflectir a narrativa para outro dos campos privilegiados por Ungulani ba ka Khosa, em que o sagrado funciona como elemento ordenador das acções das personagens. Submetidas ao poder da profecia e destituidas de autonomia, estas cumprem em geral um destino que as aniquila, o que acontecerá a Matias, no final, cavando a sua própria sepultura, numa regressão animalesca, uivando prolongadamente.

Se a memória convoca o Tempo histórico – a destruição da propriedade convoca a  independência e a morte violenta da mulher, a guerra que se lhe seguiu  , o fim de Matias acumula em si os sinais de um destino individual, não histórico, dependente de desígnios proféticos. Esta particularidade aliada ao papel reservado a João – o de testemunha distanciada, com função de coro    impede uma grelha realista da leitura, remetendo texto para um nível de oscilação em que a História é interpelada.

Vários séculos de reflexão sobre o potencial retórico da palavra remetem-nos, hoje, para posicionamentos que privilegiam o acto de leitura como meio para completar, ou mesmo materializar, essas intenções textuais que comumente designamos por significações, sendo o seu resultado múltiplo e variado, visto que dependem em grande medida do lugar em que nos colocamos enquanto agentes, mas também sujeitos dessa leitura.

Se retormarmos a dedicatória expressa em Orgia dos Loucos, A todos nós vítimas da nossa condição, seremos inevitavelmente encaminhados para a instabilidade das significações que podem emergir de A solidão do senhor Matias. Mantido nesse nível de imponderabilidade, o texto atrai-nos, enquanto leitores, para o Tempo da História, numa referencialidade que o integra num Espaço e Tempo concretos – Moçambique antes e depois da independência e da guerra que se lhe seguiu durante 16 anos.

Contudo em simultâneo as possibilidades dessa referencialidade diluem-se pela imposição de um campo dominado por critérios só admitidos pela imaginação artística. A escolha de anti-heróis para corporizar esta narrativa, caracterizados por um alheamento da sua condição, acaba por perturbar as possíveis afinidades com realidades empíricas. Mantidas sob a vigilância de processos estilísticos que as configuram fora de um quadro de verosimilhança, as bizarras personagens de Matias e João parecem querer justificar a segunda epígrafe no meu país/a única forma de liberdade permitida/ é a loucura extraida de um poema de Jorge Viegas, poeta moçambicano contemporâneo de Ungulani ba Khosa. Como uma espiral, a rede de significações produzida pelas conexões entre epígrafes, dedicatória e narrativa, instiga a uma infinidade de diálogos não necessariamente coincidentes mas certamente inspiradores.

Bibliografia
Afolabi, Niyi (Ed.) ¬ Emerging perspectives on Ungulani ba ka Khosa. Trenton NJ: Africa World Press. Inc., 2010.
Afonso, Maria Fernanda ¬ O conto moçambicano – escritas pós-coloniais. Lisboa: Caminho, 2004.
Chabal, Patrick¬ Vozes moçambicanas. Literatura e nacionalidade. Lisboa: Vega, 1994.
Laban, Michel ¬ Moçambique encontro com escritores Vol. III. Porto: Fundação Eng. António de Almeida, 1998.
Leite, Ana Mafalda ¬ ´´Oralidade, escrita, história¬Ungulani ba ka Khosa´´. In Oralidades & escritas nas literaturas africanas. Lisboa: Colibri, 1998.p.81-96.
Matusse, Gilberto ¬ A construção da imagem de moçambicanidade em José Craveirinha, Mia Couto e Ungulani ba ka Khosa. Maputo: Universidade Eduardo Mondlane, 1998.
Noa, Francisco ¬ ´´A dimensão escatológica da ficção moçambicana: Ungulani ba ka Khosa e Mia Couto´´. In A escrita infinita: Maputo, 1998.
Saúte, Nelson ¬ Os habitantes da memória. Praia: Embaixada de Portugal/CCP, 1998

 

Partilhe

RELACIONADAS

+ LIDAS

Siga nos