O País – A verdade como notícia

A Serenidade de Manuel Ferreira*

A poesia é a modalidade suprema da linguagem de sugestão.

Solomon Marcus

Boa noite a todos.

Há algumas semanas, o meu amigo Dany Wambire escreveu-me a convidar para apreciar os poemas do padre Manuel Ferreira. Li-os rapidamente e, como se pretendesse resumir o que achei dos textos, registei umas notas que, agora, estão na contracapa deste livro. Assim, o editor da Fundza saberia o que julguei da escrita do autor. A minha acção foi inocente e incondicional. Longe de imaginar que as palavras custar-me-iam uma pesada responsabilidade. Até que, há uma semana, recebi uma chamada do Dany, dizendo-me o seguinte:

– Mano Zé, lembras-te daquelas notas sobre o livro do padre?

Eu respondi que sim e ele continuou.

– O padre gostou muito do que escreveste.

Até aí, tudo bem. Um elogio desinteressado, às vezes, faz bem. Mas aquele elogio, transmitido a partir da Beira, de desinteressado não tinha absolutamente nada. E o que veio a seguir foi esclarecedor.

– Então, por isso mesmo, o padre quer que tu apresentes o livro.

Quando me apercebi da minha queda numa armadilha, propôs, imediatamente, ao escritor e editor da Fundza, que esquecesse aquelas notas e fizesse esquecer ao padre também, que assim eu escava de apresentar o livro. Sem sucesso. A obra literária do padre Manuel Ferreira já estava impressa. Sem alternativas, estou aqui, para tentar apresentar o livro de um autor que nasceu há 84 anos, em Portugal, e que chegou a Moçambique em Outubro de 1964. Eu não sei onde cada um de vocês se encontrava em Outubro de 1964, mas eu e o padre Manuel Ferreira até já éramos amigos, conhecemo-nos numa livraria aqui ao lado da Avenida Eduardo Mondlane.

Enfim, antes que me perca numa dispensável abordagem biográfica sobre o nosso autor, tratemos então do que nos une aqui no Camões: a Serenidade, do padre Manuel Ferreira.

Em geral, eu penso nesta Serenidade como uma obra de trânsito, de movimentos, que exploram a origem dos objectos, a fonte do ser e a direcção da vida. Nesta proposta poética, o padre Manuel Ferreira escreve versos que exploram a relação entre o que se teve e o que se perdeu, numa espécie de negociação temporal a unir o presente ao passado. Trata-se aqui de uma poesia consentida pelos diferentes sujeitos poéticos que levam aos poemas um exercício sobre sonhos e a infância. Vejamos, por exemplo, o texto “ribeira verde”, da página 10:

 

Ribeira verde! Esperança

a manar dentro da gente!

Nos meus sonhos de criança

descubro a tua nascente.

 

Ribeira verde, do sonho

com que este Povo cresceu!

Das tuas águas, suponho,

imensa gente bebeu

 

Além desse, podemos ver o poema “catedral de agulhas”, página 12:

 

Com três agulhas do Pinhal do Rei

com três agulhas verdes do Pinhal

descubro que, na infância, edifiquei

o sonho indestrutível e real.

 

Ou seja, em a Serenidade, sendo o sonho uma noção futura, por acontecer, é uma possibilidade a levar-nos ao passado, à infância, à fonte concreta ou (re)imaginada. É olhando para trás que os sujeitos poéticos conseguem mover-se rumo a um destino desejado, auspicioso ou, pelo menos, redentor. Portanto, na poesia do padre Manuel Ferreira não só se sedimentam aspirações na tenra idade. Na meninice, fixam-se emoções que, lembradas, criam situações propensas a uma poesia sobre lugares, gestos, sensações, despedidas e saudade. Temos aqui um poeta que, escolhendo partir, simultaneamente, sente-se preso ao que deixou para trás. Logo, inevitavelmente, configura-se na expressão da palavra um lirismo a desenvolver-se no intervalo entre o tempo e os espaços.

Ora, ainda que possamos captar no livro elementos biográficos do padre Manuel Ferreira, nesta sua proposta poética notabiliza-se um poeta menos voltado a um encantamento individual. Para Ferreira, um poeta existe para os outros, conforme podemos comprovar no poema “novo regresso”, na página 16:

 

De novo, regresso à Mina.

E esta água doce corrente

suavemente me ensina

a ser dom pra toda a gente

 

Outro exemplo é o poema “descompromisso”, na página 29:

 

Não canto angústias minhas,

que as não tenho nem invento

E não assumo o tormento

de quem as tem

só por cantá-las.

 

No primeiro excerto, o sujeito de enunciação parece referir-se a uma experiência particular, que inclui o regresso a algum lugar bom, onde aprende a ser plural, a dar-se aos seus e a quem possa pertencer. Já no segundo excerto, o sujeito de enunciação reconhece implicitamente que nele cabem as dores dos outros. Deste modo, sem dogmas, a escrita do padre Manuel Ferreira valida, digamos assim, a percepção do intelectual romeno Solomon Marcus, quando, no artigo “Poética Matemática probabilística” afirma que a “A poesia é a modalidade suprema da linguagem da sugestão”. Nesse aspecto, Serenidade é um livro de versos simples, todavia, vale a pena ler pelas inúmeras sugestões evidenciadas.

Por fim, Serenidade, do padre Manuel Ferreira, é confrontação, questionamento e intervenção. Podemos ler esses registos no poema “se”, página 50. Esse é um texto constituído por cinco estrofes, mas podemos ler a primeira, a quarta e última.

 

Se pudéssemos contar

o que nos diz a razão…

Se nos deixassem pensar…

Mas não nos deixam. Pois não…

 

Se pudéssemos cumprir

toda a nossa obrigação…

Se nos deixassem ser justos…

Mas não nos deixam. Pois não…

 

Se pudéssemos fugir

da nossa incrível prisão

Se nos deixassem ser livres

Mas não deixam. Porque não?

 

Este poema do padre Manuel Ferreira foi escrito em Lisboa, em 1967, anos depois de nos termos conhecido. No entanto, apesar de ter sido escrito num outro contexto político e geográfico, continua actual e a dialogar connosco. Por que será que as questões sobre a justiça e a liberdade referenciadas no poema nos dizem respeito, a nós que nos encontramos a 11 mil quilómetros da capital portuguesa e há 56 anos da data em que foi escrito? Bem, a resposta a essa pergunta será dada por cada um de vocês.

Obrigado pela atenção.

 

*Texto escrito de cor na sequência da apresentação do livro Serenidade, de Pe. Manuel Ferreira, a 11 de Abril, no Camões – Centro Cultural Português em Maputo.

 

 

 

 

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