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«Sense of presence»: um mote aceitável!

Por: Cremildo Bahule[1]

 

Nos últimos dois anos, para justificar o meu desarranjo dos efeitos sonoros da pandemia, decidi prestar atenção na concepção, edição e divulgação dos discos editados na arena do jazz nacional. Nessa auscultação tímida – típica de um professor da 4.ª classe – tenho me deparado com discos supérfluos, razoáveis e bem-elaborados. Cito quatro, no sentido de vénia, que chamaram a minha atenção: «Blue Window» (Valter Mabas, 2021), «Sense of Presence» (Elcides Carlos, 2022), «Sounds of Peace» (Moreira Chonguiça, 2022) e «Endless Dream – O Sonho da Música» [Do Carmo, 2023 (edição póstuma com a participação de vários artistas]. O fulgor e o mérito destes quatro discos assenta num único facto: a consciência da utilização de elementos oriundos da música folclórica e da música popular nas diversas linhas de interpretação que se enquadram, se acharmos pertinente para a nossa etnomusicologia, na música popular moçambicana. Tal justificação parece ínfima, justa e razoável – dependendo do ponto de vista – se termos em conta que temos discos editados por moçambicanos que reflectem a pura reprodução do jazz estadunidense ou sul-africano. O último caso é fácil justificar: proximidade geográfica e os «alinhados melódicos de Cape Town».

Para alicerçar a minha nota preambular irei me centralizar no disco «Sense of Presence» (Elcides Carlos, 2022) por conta do concerto que vi, na noite da última sexta-feira, do mês passado, 30 de Junho de 2023, na Galeria do Porto de Maputo. Creio que Elcides Carlos nos regala com um vocabulário harmónico bastante rico, com sonoridades impressionistas com bases e experiências com as circunstâncias, como se pode perceber na música «Sedução» (no disco tem a participação de André Sansi & Sheila Malijane) e «O Que Seria» (no disco tem a participação de Rosário Giuliani). Tem uma visão ímpar dos arranjos de melodias tradicionais que nos destinam para explorações modais (advindo do Jazz Modal). Nestas explorações, pode observar-se uma crescente libertação das fundações harmónicas da improvisação em direcção ao poder da melodia livre, o que abre um caminho para a criação do Free-Jazz. É aqui, no Free-Jazz, que estabeleço Elcides Carlos no cenário do jazz moçambicano. O que me chama atenção no disco «Sense of Presence», e certifiquei no espetáculo, é que as composições deste álbum trazem uma honestidade quase ingénua, bem própria de um disco de estreia. São composições com um olhar de novidade para a vida e as experiências que ainda se enquadram como primeiras. Realmente, existe uma sensação de busca por uma presença que só o artista saberá nos dizer e confirmar, quiçá, no segundo ou terceiro álbum. O derradeiro aspecto que é importante de ser mencionado é o modelo dialéctico de apresentação das composições. Essa dialéctica seria, assim, congénita e essencial ao jazz moçambicano enquanto género musical dotado de uma estabilidade em termos de temática [a fricção de musicalidades sendo aqui constituinte, evidenciando-se principalmente nas improvisações], de estilos [fundamentalmente idiomas regionais, como a musicalidade chope que se ouve na música «Mhango» (no disco tem a participação de Cheny Wagune e «Há Fana» (no disco tem a participação de Radjha Ali & Drew Zaremba] e de estruturas composicionais [no código musical propriamente, como na rítmica e no emprego de determinados modos]. As diversas musicalidades trazidas e convidadas tanto para o disco como para o concerto dialogam mas não se misturam: as fronteiras musicais e simbólicas não são atravessadas, mas são objectos de uma manipulação que reafirma a diferença que Elcides Carlos quer impor no jazz moçambicano.

[Evidentemente a minha postura é baseada na audição do disco e no espetáculo que teve como título «In a Soulfoul & Vibrant Afro Jazz Night». Um espetáculo, diga-se sem sortilégios, começou com atraso de quarenta e um minutos depois da hora marcada, com ruído no som nas primeiras três músicas. Porém, apesar deste enredo e problemas técnicos, o «In a Soulfoul & Vibrant Afro Jazz Night» teve o mérito de confirmar que Moçambique, como disse antes, tem infinitas musicalidades e dissemelhantes sonoridades como consegui atestar com os convidados especiais – Xixel Langa, Bhaka Yofole e Deodato Siquir – e dos instrumentistas: Lelas Mavie (baixo), Tony Paco (bateria), Nando Morte (percussão), Sarmento de Cristo (saxofone), Nicolau Cauaneque (teclado), Pauleta Muholove e Sheila Malijane (coros)].

Termino este meu desarranjo harmónico e trémulo com uma certeza: julgo que chegou o momento de assumirmos que a história do jazz moçambicano deve começar a ser escrita com sinceridade e atalhos que nos conectem com o nosso devir. Utilizei, propositadamente, o disco «Sense of Presence» e o espetáculo «In a Soulfoul & Vibrant Afro Jazz Night», de Elcides Carlos, como mote para justificar que os elementos sincrónicos entre o Jazz, que se pretenda que seja moçambicano, e a música popular tem simetrias desde suas bases musicais primárias ligadas as heranças da música urbana ou folclórica. Precisamos definir e classificar todas as fronteiras idiomáticas do Jazz moçambicano. É natural que no processo de argumentação, escrita e valoração todas tenhamos inconsistências e estereótipos relacionados ao Jazz moçambicano. Todavia, é um caminho inevitável. Julgo que, com outras lentes, outros actores e outros saberes, podemos falar de categorias tonais, avant gard, pulsação do ritmo em semínimas, escalas pentatónicas e todas as categorias cromáticas que caracterizam, por exemplo, as obras «Blue Window» (Valter Mabas, 2021), «Sounds of Peace» (Moreira Chonguiça, 2022) e «Endless Dream – O Sonho da Música» [Do Carmo, 2023 (edição póstuma)].

 

P.S.: o disco «Sense of Presence» (Elcides Carlos, 2022) tem um design harmonioso, um encarte apetecível e com uma ficha técnica bem detalhada. Um disco de fazer cortesia para a prateleira dos coleccionadores de Jazz. Bayete!

 

[1] Cremildo Bahule é professor, ensaísta e editor. | cremildo.bahule@gmail.com

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