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“Moçambique vai se imiscuir na minha escrita”

Veio à capital do país para participar na Feira do Livro de Maputo. Ali encontrou-se com escritores e leitores e ainda referiu-se à sua oficina literária. Depois disso, o escritor português, Valério Romão,  garantiu: “não sei como, mas Moçambique vai se imiscuir na minha escrita”. 

 

Pela primeira vez vem a Moçambique. Como é esta coisa de conhecer um país por via da literatura?

É, de certa forma, estranha. É a primeira vez que estou cá em Moçambique e em África. Sinto-me entusiasmado por estar aqui, como é óbvio, e com vontade de ver as coisas a acontecer. 

 

É algo que lhe interessa estar em espaços que falam português? 

É óptimo estar em espaços que falam português. Embora eu tenha nascido em França e fale razoavelmente francês, a verdade é que qualquer outra língua que não seja português é sempre uma segunda língua que me obriga a uma tradução de mim próprio em simultâneo. 

 

Veio a Moçambique para participar na Feira do Livro de Maputo. O que significa para si estar em eventos literários desta natureza? 

Como em todo o lado, há escritores que gostam muito do contacto com os leitores e escritores que preferem um certo anonimato, os que cultivam a ausência desse contacto. Eu gosto de estar com os meus pares, gosto de lhes conhecer e de perceber o que pensam para além do que escrevem. Gosto de estar com os meus leitores, que são uma componente fundamental do que eu escrevo. Enquanto um autor deve ter uma autoridade suprema na forma como conduz um romance, quanto à interpretação desse mesmo romance a sua autoridade é completamente igual a do leitor. A sua interpretação não é melhor, nem pior, é apenas diferente. E é isso que eu também acho que traz beleza à literatura, esta democracia pós-feitura do livro que faz com que cada objecto possa ter múltiplas interpretações. 

 

Se podemos colocar a pergunta desta maneira, os que mais lhe interessam numa feira do livro são os escritores ou são os leitores?

Interessam-me os dois. Já me têm acontecido situações engraçadas com os leitores em eventos deste tipo. Eu tenho um livro que se chama Autismo, meu primeiro romance, que acaba de uma forma bastante dúbia. Uma vez teve um casal que numa apresentação do livro veio me perguntar qual dos dois tinha razão relativamente ao final. Como se eu tivesse alguma chave de leitura daquele livro, que não tivesse entregado quando o compôs, o finalizei, o imprimi e foi distribuído… A verdade é que eu não tenho essa chave, então voltamos à interpretação de cada um. A minha interpretação não é soberana em relação à interpretação deles. Eu acho que eles ficaram um bocado chateados comigo por eu não dar nem razão a um e nem razão aoutro. Acho que teriam ficado menos chateados se eu tivesse dado menos razão a qualquer um deles. 

 

Mesmo a propósito desse seu romance, Autismo, de uma linguagem dura e realidade crua. Por quê a crueldade?

A questão da crueldade tem sobretudo que ver com cada livro… A forma e o estilo devem adequar-se ao tema que se está a falar. Acho que seria desonesto da minha parte escrever sobre um assunto que é o autismo e adorná-lo de tanta decoração fantasiosa. Recuso-me também a isso porque acho que isso faz parte das indústrias do entretenimento, sejam elas o cinema ou a literatura de entretimento. E eu acho que a minha missão não é essa e a da literatura não a vejo a passar por aí. Tentei adequar a minha forma de escrever, o meu estilo à dureza que o próprio tema exige. Não quer dizer que eu vá ser sempre duro ou que escreva da mesma forma. Pareceu-me que seria uma fraude tentar vender aquele tema retirando-lhe todo o sangue e todas as vísceras que a prior tem. Há filmes sobre a guerra que são delicodoces, que se transformam em qualquer coisa que possa ser vista por toda a família ao domingo à tarde, mas isso não é uma coisa que me interessa. A mim interessa-me a radical honestidade. 

 

A sua escrita é uma tentativa de buscar a história quotidiana ou de fugir disso?

São dois movimentos complementares. Ainda agora eu estava a vir aqui ter contigo, e, como é a minha primeira vez em Maputo, estou sob carga de sensações. Estou atento a tudo de uma forma que não estaria se estivesse em Lisboa porque lá eu já conheço tudo. Inclusive tenho a certeza de que Moçambique há-de voltar, de alguma forma, não sei qual, à minha escrita. Não sei excatemente como, mas Moçambique vai se imiscuir na minha escrita. Precisamente porque a escrita comporta-se nos seus movimentos a absorção, gestão e recomposição em alguma coisa de novo e de literário. 

 

Resolveu estudar Filosofia porque sempre acreditou que lhe daria conteúdo, ao invés da Literatura que lhe daria a forma. Não há conteúdo num curso de Literatura? 

É diferente. A abordagem é radicalmente diferente. Nietzschediz que alguém se torna escritor quando começa a ver a própria forma como conteúdo. De facto passa muito por aí, porque o estilo e a forma são a marca de um escritor e podemos ver isso tendo em conta que a Humanidade enquanto repositório de sonhos e esperanças não mudou muito nos últimos três mil anos. Ou seja, toda a nossa evolução é tecnológica, mas continuamos a amar, a odiar, a cobiçar, e etc. Portanto, esse fundo não muda, o que muda é a roupagem da época e o estilo do escritor. Nesse sentido, achei que Filosofia me dava melhor conhecimento da estrutura do humano do que a Literatura me podia dar num ponto de vista estritamente teórico, embora toda a Filosofia sejaassente nos discursos de literatura e nos relatos que a literatura traz. 

 

A forma já está inventada. É isso que está a querer dizer?

A forma é uma construção, o humano não é uma construção. Ou então é uma construção diferente da forma. 

 

Como a Filosofia tem-lhe valido na criação literária?

Há muitas situações que eu descrevo numa perspectiva literária, cujo fundamento é uma perspectiva filosófica. 

 

O que mais exigiu de si o Autismo?

Em primeiro lugar, exigiu-me passar pela situação descrita no livro. Não que o livro seja uma biografia, mas tem uma componente biográfica. A primeira condição para o ter escrito foi passar pelas vivências que lá são enunciadas em alguma parte. Ou seja, para escrever um livro como Autismo há que ter uma quota-parte de empenhamento de uma situação semelhante. 

 

O Autismo, livro escrito em três meses, é a forma de expressar o que não conseguiria se não fosse pela literatura?

Sim, também. Acho muito difícil contar uma história com aquela beleza temporal sem ser pela literatura, pelo teatro ou pelo cinema. Acho que estas são as artes narrativas que melhor exprimem este tipo de experiências.

 

Autismo é um livro catártico. A catarse é algo que lhe preocupa como escritor?

Eu acho que me preocupa mais do ponto de vista do leitor do que do ponto de vista do escritor. É mais importante induzir a catarse no outro do que a procurar por si próprio. 

 

Qual é a consequência que pode advir de nós ativarmos a catarse?

Pode advir uma certa redenção, uma espécie de afinal a culpa não é minha ou não é inteiramente minha. 

 

Além de Autismo é autor do livro O da Joana. O que lhe interessou no universo feminino, naquela história? 

Primeiro, foi o grande desafio de falar na perscpetiva de uma mulher, a possibilidade de mergulhar no corpo de uma personagem e fazer de contas. A literatura é um faz de contas. 

 

Ao escrever esse livro pensou em dar protagonismo à mulher por um factor extraliterário? 

Não. Para ser honesto, o que me interessou ali foi aquela história que me pareceu merecedora de ser contada e o desafio de a contar. 

 

Estes dois livros fazem parte da trilogia Paternidades falhadas. Como é que se falham essas paternidades?

O nome surgiu precisamente por causa do primeiro livro, Autismo. Neste caso é simples explicar. Penso que alguém é pai ou mãe em dois momentos distintos. Um, quando a criança nasce; dois, quando a criança diz papá ou mamã, uma espécie de reflexo que legitima aquela pessoa enquanto pai ou mãe. No caso do Autismo, existe um primeiro momento em que a criança nasce, mas não existe um segundo momento em que a criança fala. Não falando, não há esse momento de confirmação, esse reflexo que devolve a imagem daquilo que se é. A falha é precisamente essa. Em O da Joana a falha é diferente porque é alguém que quer ter um filho de forma obsessiva há anos e que vai à maternidade para descobrir que o filho está morto com sete meses de gravidez. No caso do que fecha a trilogia, é uma mãe com uma filha com Alzheimer, uma filha que não foi criada para ser adulta e que de repente, quando a mãe fica com demência, tem que tratar dela, como se a filha fosse a mãe e como se a mãefosse a filha. 

 

O que quis encontrar na Feira do Livro de Maputo?

Pessoas que estão a escrever agora e que não conheço pessoalmente. 

 

Sugestões artísticas para os leitores do jornal O País?

Sugiro Parasita, de um realizador sul-coreano que não consigo lembrar o nome, e a obra de António Cabrita, que acaba de lançar uma antologia de poesia hispano-americana, traduções que ele fez de uma série de autores espanhóis e sul-americanos. 

 

 

PERFIL
Valério Romão é escritor português. Nasceu em 1974, em França. É formado em Filosofia e é autor de Autismo e O da Joana. Além de escritor de ficção, escreve para o teatro.

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