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As ancas do camarada chefe? Sérgio Raimundo lança diário sobre a realidade de Moçambique

Foto: JdR

O escritor Sérgio Raimundo lançou, esta segunda-feira, na Cidade de Maputo, o seu mais recente livro de crónicas. Intitulado As ancas do camarada chefe, o título pretende ser um testemunho da realidade moçambicana.

 

Primeiro, as pessoas. Muito provavelmente, o Camões – Centro Cultural Português não faz ideia de quando é que teve de interromper a entrada de potenciais leitores à sua biblioteca, devido à lotação mais do que esgotada. Esta segunda-feira, isso aconteceu. Afinal, jovens, senhores, velhos, artistas, jornalistas, académicos, políticos ou público em geral, segundo disseram alguns, lá foram ver as famosas ancas do camarada chefe.

Como não é muito habitual em cerimónias de lançamento de livros, em Moçambique, muitos compraram o novo título do escritor que, nos últimos anos, vive entre Moçambique e Portugal. Por isso mesmo, como se viu, a fila para os autógrafos foi concorrida como bichas de pão, de outros tempos, e a partir do lado de fora da biblioteca do Camões.

Segundo, a expectativa. Que ancas, afinal? De que chefe? Em surdina, artistas e convidados expressavam sons quase ininteligíveis. Pois, ao mesmo tempo que desejam dizer, a vontade de ouvir era maior. Assim, apesar de a biblioteca do Camões ter estado cheia de gente, do lado do público, o silêncio sempre se impôs à apresentação de Álvaro Carmo Vaz, que, na sua intervenção, se referiu ao poder criativo do escritor e à originalidade das suas crónicas, isto é, testemunhos da realidade moçambicana. E realçou: “Estas crónicas são imprescindíveis testemunhos deste nosso tempo, deste nosso Moçambique. São textos que oscilam entre o dramático, o trágico e o infeliz. Sérgio Raimundo coloca no centro as pessoas. Com as mulheres, na sua luta diária, num plano primeiro que merece a nossa atenção”.

O livro de Sérgio Raimundo foi lançado há dois meses em Portugal. No entanto, mal “aterrou“ em Moçambique, polémica. Tal situação valeu ameaças de morte ao escritor, inclusive, expressas durante madrugadas. Sobre isso, Álvaro Carmo Vaz referiu que Moçambique não deve e não pode transformar-se num país do medo e protestou contra ameaças de, eventualmente, lambe-botas que criticaram o título do livro do escritor sem terem lido.

As cerca de 60 crónicas de Sérgio Raimundo, nessas Ancas do camarada chefe, são curtas, constituindo 125 páginas. Com o livro, a esperança de Álvaro Carmo Vaz é que o registo que se vai fazendo do país, através das crónicas, sirvam para que os mais jovens fiquem com ideias das vivências moçambicanas. Até porque nessas ancas do camarada chefe se sentem cheiros de verdade a par da qualidade literária do autor.

Além do tema sobre as mulheres, que sofrem pelas suas e pelas dificuldades que são de todos, com violência doméstica e conformismo, Sérgio Raimundo explora, no seu novo livro, questões como dificuldades nos chapas, no atendimento e no tratamento médico nos hospitais públicos e ainda valoriza a importância das mães, quiçá, as verdadeiras camaradas chefes.

Entre algumas crónicas do livro, encontram-se as que o autor se refere a figuras históricas moçambicanas. Por exemplo, Marcelino dos Santos, Graça Machel e Armando Guebuza.

 

Sérgio Raimundo: entre o nervosismo e a acutilância

Depois de uma longa e bem acolhida apresentação do livro, feita por Álvaro Carmo Vaz, chegou o momento de Sérgio Raimundo dizer algumas palavras de ocasião.

A primeira coisa que o escritor fez foi contar um episódio engraçado, que lhe aconteceu nesta segunda-feira enquanto se deslocava à cerimónia de lançamento. Mesmo em jeito de crónica, o autor contou que, graças às ancas, ele próprio se tornou chefe, no chapa, e, por isso, não só teve o direito de se sentar à frente da minibus, bem como o cobrador dispensou-lhe de qualquer pagamento, pois reconheceu nele, igualmente, um camarada chefe.

Assim, Sérgio Raimundo tentou disfarçar o nervosismo. Ao invés de falar propriamente do livro, diante de tantas pessoas que foram ver a cerimónia, o autor preferiu apresentar mais uma crónica que, de facto, mereceu muitos sorrisos.

Não tendo dito o que os jornalistas queriam ouvir, a parte da polémica que bem alimenta certos jornais, houve uma disputa feroz para entrevistar o escritor que, pela audiência, confessou estar a sentir-se como Cristiano Ronaldo. Os fãs de Lionel Messi ou de Dominguez parece que não gostaram da comparação. Com o microfone na mão, desviaram o escritor do futebol, que o foco era outro: a polémica, as ameaças, a morte. Então, a partir daí, não se ouviu muito do livro em si, mas de coisas como liberdade de expressão, medo e etc..

Ainda assim, Sérgio Raimundo, primeiro, confessou que, apesar de não ser o seu primeiro livro, sentia alguma responsabilidade por estar a lançar As ancas do camarada chefe. De seguida, clarificou: “Este livro, no fundo, é um diário sobre a realidade de Moçambique e sobre peripécias que se passam aqui em Moçambique”.

Já mergulhado no tema polémica, Sérgio lembrou-se do seu lado Militar. Aí, sim, foi mais acutilante nas respostas. “Eu acho que um artista deve fazer arte. A arte é aquilo que movimenta, que cria convulsão. Eu não faço artesanato. O artesanato é que não nos remete ao pensamento. Sobre as polémicas? Eu fiquei totalmente surpreendido porque se levantou sobre um livro que ainda não tinha sido lançado. Eu achei isso incrível porque o livro ainda não tinha sido lançado e já havia quem sabia do seu conteúdo. E outra coisa, eu responsabilizo-me por aquilo que escrevo e não por aquilo que as pessoas entendem que eu escrevi. Eu escrevi um livro e os outros escreveram um livro sobre aquilo que eu escrevi. E esse livro a mim não me pertence. O livro que eu escrevi é este que foi apresentado hoje, As ancas do camarada chefe.

Já tenso, a imprensa quis saber o que o escritor sofreu, de concreto, em termos de ameaças. Sérgio Raimundo respondeu dizendo que “Deram-me uma escolha. ‘Queres que circule o teu livro ou então tu? Vocês os dois não podem circular’. Eu fiquei de rastos e tive dias difíceis porque muita gente ligada à minha família era ameaçada. Eu tenho vindo a Moçambique de seis em seis meses. Quando vim, ano passado, vi uma espécie de ignorância. Eu vi que aqui, em Moçambique, a ignorância era extrema. Mas, com isto que aconteceu comigo, eu vi que da ignorância nós saímos para estupidez. Porque o meu livro foi julgado tendo em conta o título. Só isso”.

Antes de terminar a série de respostas dadas aos jornalistas, Sérgio Raimundo, que colabora com a imprensa moçambicana e portuguesa, disse que não entende a razão das ameaças, apenas que certas pessoas se precipitaram a fazer uma analogia do título do seu livro com o que ele não sabe. “Estou feliz porque o meu título acabou por ser um motor de criatividade para as pessoas. Por cima do meu título, foram escritos vários títulos que era bom que fossem publicados também”.

Na sequência disso, os jornalistas tiveram de interromper a entrevista ao escritor porque o público, entre empurrões, disputava o primeiro lugar na fila de autógrafos, que não era bicha de pão de outros tempos.

 

 

 

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