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Okolo: herói ou epíteto de uma busca inglória em “A Voz” de Gabriel Okara

O Génio é para si próprio a sua própria recompensa,

 porque aquilo que cada um é de melhor

deve sê-lo necessariamente para si mesmo”

Arthur Schopenhauer

Se mesmo na condição de um personagem que sustenta um romance impactante, Okolo tivesse interiorizado esta famosa e intrigante frase de Arthur Schopenhauer, a sua função (entenda-se acção do personagem definida do ponto de vista de seu significado no desenrolar da intriga) no enredo de “A Voz” teria sido diferente da que se lê nas 135 páginas desta reedição feita em 1980 pela Edições 70, com a tradução (de inglês para português) de Maria Cristina Rocha.

Originalmente publicada em 1964 com o título “The Voice”, Gabriel Okara estreou-se neste livro como ficcionista quando até então era conhecido como “poeta de muita sensibilidade” conforme refere Arthur Revenscroft na introdução desta reedição.

A Voz” revela-se-me como um enredo local mas global, circunstancial mas actual e, acima de tudo, revigorante cada vez que se lê nas sociedades actuais (africanas, se quisermos) o mesmo mote que terá norteado o enredo alegórico criado por este escritor nigeriano.

O que me faz epigrafar a frase de Schopenhauer neste texto é o pano de fundo deste romance que decorre entre a aldeia de Amatu (aldeia natal de Okolo) e a cidade de Sologa, onde o jovem é “exilado” devido à sua busca por algo que não chega a revelar de forma clarividente. Esta sua busca chega a ser tão ferrenha quanto incómoda para os anciãos e, sobretudo para o chefe Izongo.

Iluminado pelos estudos que o permitem vislumbrar o que poucos da sua aldeia conseguem aceder devido à baixa senão inexistente escolaridade, Okolo indaga aos seus semelhantes e ao poder estabelecido sobre a pertença de algo que não especifica com a sua recorrente questão: pussuí-lo-ão? Pela dedução, os membros da aldeia inferem que as indagações de Okolo são em si uma afronta ao establishment vigente em Amatu numa busca por uma vida política e socialmente melhor tendo, então, granjeado simpatias por parte de alguns membros da aldeia, o que para o Chefe Izongo tornou-se num perigo pessoal.

Não faltaram, portanto, apelos de gente que embora não tivesse lido tantos livros quanto Okolo encontraram na escola da vida, argumentos para sugerir que este vergasse aos ditames vigentes em Amatu:

“neste mundo tudo se modificou. O mundo já não é recto. É por isso que se vejo alguém virar as palmas das mãos, viro também as minhas para baixo. Se, ao contrário, vejo que abrem as mãos e as elevam ao céu, faço o mesmo com as minhas. Põe isso a parte e procede como nós: terás a alma tranquila como nós temos.” (p. 57)

Amatu, torna-se, no universo temporal deste romance, numa terra em que “as almas das pessoas estão cheias de dinheiro, carros e casas de cimento; por todo o lado só se vê a procura do dinheiro”(p. 58) relegando todo e qualquer valor à insignificância.

Movido pelo princípio altruísta assente na crença do valor individual do ser em relação à vida dos outros, Okolo insurge-se contra o paradigma vigente e acaba por ser expulso da sua terra natal para Sologa, uma cidade vizinha cujo elo de ligação é um rio. Ao longo da viagem no barco, Okolo vivencia, novamente, o peso do seu sentido altruísta:

“A rapariga que ia ter com o marido encostou-se a Okolo. Tinha o corpo molhado. Okolo olhou para ela. Não possuía qualquer agasalho. Okolo tornou a levantar-se, afastou o impermeável com os cotovelos para tapar a rapariga e sentou-se. A rapariga fitou Okolo, hesitou e depois chegou-se mais para ele para se tapar melhor” (p. 69)

Esta acção altruísta e quiçá ingênua de Okolo associada ao passado que deixava em Amatu (que também o perseguia) tornaram a sua vida imaterializável em Sologa, tendo sido, enfim, mandado de regresso à sua terra natal pelas autoridades locais.

Ao longo da viagem de regresso a Amatu

“Okolo ia sentado com os joelhos encostados ao queixo, procurando não tocar em ninguém. Pelo menos isso tinha aprendido. No seu íntimo, sorriu. Seria possível que o nosso corpo nunca tocasse no corpo de outra pessoa, que a nossa alma nunca contactasse com outra, nos bons e maus momentos?” (p. 117)

Okolo debruça-se sobre estas questões durante os três dias e as três noites que a viagem durou para concluir que “cada pessoa deve ter um objectivo na vida, para além de criar filhos, e que a paz de consciência reside precisamente na realização desse objectivo”. (p. 119)

Já em Amatu, encontra a aldeia em alvoroço porque “Izongo rigozijou-se por Okolo ter deixado a aldeia. Ficou com o coração cheio de doçura, sentiu-se possuído de bondade e convocou toda a população de Amatu: homens, mulheres, crianças, coxos, surdos, mudos e cegos”(p. 77): comemora-se então a sua expulsão de Amatu. Vendo a ocasião como sendo propícia para a sua reaparição, faz-se pela multidão ao centro das atenções. Antes que este dissesse uma palavra, Tuere pegou na mão de Okolo e saíram do local, tendo sido, na manhã seguinte, afogados pelo rio abaixo a mando do Chefe Izongo.

Em “A Voz” a Gabriel Okara constrói esta narrativa em XII capítulos caracterizados pela linearidade de um enredo que não vem à superfície graças à poeticidade das narrações e descrições que além de endossar a construção da cor local revigoram o pensamento de Spencer citado por Chklovski[1] para quem “o mérito do estilo consiste em pôr o máximo de pensamento num mínimo de palavras”.

De facto, uma leitura apressada de “A Voz” associada à dificuldade (por parte do leitor) de estabelecer uma relação dialógica com a realidade extratextual pode conduzir à conclusão injusta deste enredo, situando-o apenas na dialéctica de um conflito político. Contudo, o leitor informado há-de proceder nesta aparente simplicidade e desinteressada poeticidade de Okara uma mescla de saberes, perspectivas e insights, tal como refere Stein (1981: 214) citado por JONA (2013: 51):

“the implied reader offers simultaneously an interpretation of the history of the novel and a theory of the novel reading as such; the act of reading enlarges upon letter, widening its perspective from prose fiction (…) a beholder must create his own experience. And his creation must include relations comparable to those which the original producer underwent”

Esta “cavalgada” pela poesia presente nesta narrativa de Okara faz-se necessária não só para a interpretação do significado patente nas entrelinhas do significantes mas para compreender o devir do estado de espírito de Okolo e por que não dos restantes personagens senão dos objectos referidos porque, em geral, “o acto de percepção em arte é um fim em si mesmo e deve ser prolongado; a arte é um meio de sentir o devir do objecto, aquilo que já se tornou não interessa à arte.” É daí que ao descrever o estado de espírito de Okolo, Gabriel Okara procede da seguinte forma:

“Okolo caminhava na noite escura, tropeçava, continuava a caminhar. O seu interior estava em desordem, como uma sala onde os ladrões tivessem deitado ao chão cadeiras, almofadas, papéis. Abria e fechava os olhos, abria e fechava, esperando ver alguma luz sempre que os abria, mas não viu ninguém naquela noite escura.” (p. 82)

Assim, Okolo torna-se em “A Voz” numa metaforização de um discurso para além do enredo e fixa a sua textualidade no questionamento do alheamento das pessoas às causas comuns, ao sentido de missão e ao curso pelo qual pretendem conduzir as suas vidas. Ora, a busca incessante e ingênua que ele engendra qual um peregrino destemido coloca-o numa posição de busca de uma heroicidade (por lutar pelo bem dos demais descorando qualquer risco à sua integridade física ou moral) ou o transforma no epíteto de uma busca inglória porque não conseguira mais que o despertar de um e outro personagem no enredo, embora se possa daí antever a possibilidade de a sua “luta” ser continuada por outros. Ora, esta é uma inferência muito além do texto que talvez não vingue porque tal como alerta-nos Tynianov[2] “onde a vida entra na literatura, torna-se ela própria literatura e deve ser apreciada como tal”.

Para todos efeitos, ler “A Voz” de Gabriel Okara e criar um sistema de equivalências entre o que parece ter sido o mote da sua criação com o que se vive pelo menos na sociedade moçambicana nos dias de hoje, dá-nos ensejo de perguntar: pussuí-lo-ão?

 

Bibliografia

JONA, Sara. Entre o Índico e o Atlântico: ensaios sobre literatura e outros textos. Maputo: Ndjira. 2013;

OKARA, Gabriel. A Voz. Tradução de Maria Cristina Rocha. Lisboa: Edições 70. 1980.

TODOROV, T. et al. Teoria da Literatura – I: textos dos formalistas russos apresentados por Tzvetan Todorov. Tradução de Isabel Pacoal. Lisboa: Edições 70. 1999;

[1] A arte como processo (74 – 95) in TODOROV et al (1999: 79)

[2] A Noção de construção (118 – 123) in TODOROV et al (1999: 119)

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