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Entre âncoras e progressismos dos “novos painelistas” do debate sobre a criação literária

…não há, de um lado, o abstrato e, de outro, o concreto.

Forma e conteúdo são da mesma natureza, sujeitos à mesma análise.[1]

Levi-Strauss

Este pensamento de Levi-Strauss continua sendo actual e atuante nos dias de hoje, pelo menos no cenário literário moçambicano cujas ilações chegam-me por via da mera observação e, haja humildade, pelo bastante incipiente envolvimento.

Na crítica feita por Levi-Strauss ao modelo de análise teorizado por Vladimir Propp no seu Morfologia do conto maravilhoso”, dentre vários aspectos destaca-se o que o primeiro considera “pecado” não só de Propp mas do Formalismo no seu todo ao pregar que a forma e o conteúdo devem ser absolutamente separados, pois somente a forma é inteligível, e o conteúdo não é senão um resíduo desprovido de valor significante. Contudo, para Levi-Strauss (e para o estruturalismo) esta oposição não existe: não há, de um lado, o abstrato e, de outro, o concreto. Forma e conteúdo são de mesma natureza, sujeitos à mesma análise.

Não caberia nesta redação, a busca possível de fazer sobre este aspecto contudo valerá termo-nos harmonizado a respeito do âmbito em que esta epígrafe foi extraída. Vem isto a propósito de um cada vez mais recorrente, e quiçá escaldante, debate que se materializa entre escritores e críticos literários, senão aspirantes a estes exercícios, que mesmo nestes tempos austeros conseguem, através dos meios virtuais, ensejo para trocar impressões em prol da literatura.

Como uma espécie de “servilismo à musa da história” para recordar as constatações de Derek Walkott no seu bastante peremptório e polémico artigo “The Muse of History” as percepções e credos crispam-se entre os binómios “forma e conteúdo” do ponto de vista do lado em que a balança da primazia deve pender. Há, por um lado,

uma postura de recriminação que vê no senso comum do que se apregoa como característica sine qua non da literatura uma forma de opressão. Esta foi uma percepção alimentada, sobretudo, pela vontade dos primeiros fazedores de literatura moçambicana (e não só) em forjar uma postura ética e estética própria e que conferisse uma autenticidade identitária.

Por outro,

revela-se uma visão que se mostra despida das amarras do “servilismo à musa da história” e está em buca de uma universalidade que é natural nos tempos que correm e devido a essa naturalidade, assume-se, também, a universalidade de um esteticismo já vencido, por exemplo, pela afirmação em epígrafe e, ainda mais, pela Desconstrução de Jacques Derrida.

A primeira postura defende a primazia do conteúdo na obra literária e a segunda, contrariamente, assume que a forma é que merece relevo tanto na criação assim como na recepção.

O que ainda está por considerar nesta conversa para podermos eliminar as assimetrias entre as âncoras e progressismos dos painelistas é que se está a abordar um assunto já teorizado, de tal forma que se ainda se mostra recorrente, das duas uma: ou há um desconhecimento desses consensos ou se está, em nosso meio, para engendrar um novo cânone a partir da posição que irá prevalecer.

Quanto aos consensos a que me refiro, diga-se que a primazia da forma em detrimento do conteúdo (na literatura) fora defendida, por exemplo, por Boris Schnaiderman ao afirmar que

ela (a obra literária) poderia conter esta ou aquela filosofia, reflectir esta ou aquela opinião política, mas, do ponto de vista literário, o que importava era o processo, isto é, o princípio da organização da obra como produto estético, jamais um factor externo.”[2]

Esta visão foi sendo contraposta por vários estudiosos dentre os quais destaca-se Teun Van Djik através da sua teoria geral da comunicação literária que compreende, em simultâneo, a teoria dos textos, a do discurso e a dos contextos literários.

Estas teorias surgem de um debate similar ao que ganha matéria nos dias de hoje (não só nosso meio) como forma revitalizar o compromisso com a arte da escrita que foi sempre forjada entre âncoras e progressismos. Sobre a âncora que nos apregoa à primazia da forma, Salvato Trigo no seu “Ensaios de Literatura Comparada Afro-Luso-Brasileira” alerta-nos que “é óbvio que tal posição só pode levar-nos a uma aporia teórica: na verdade, com ela perder-se-ia a dimensão relacional com que o texto se alicerça para se construir como síntese coerente e coesa de representação ou de figuração do mundo.”

No nosso caso, estas crispações tem toda razão de ser e remontam as discussões sobre o ser ou não ser duma escrita “panfletária” que marcou uma certa geração e que, pela antítese ou pelo contexto, talvez tenha sido peremptório que assim fosse.

Hoje, os anseios parecem outros e faz sentido que assim seja, porque há cada vez mais motivos que justificam a aversão pelos rótulos que se fazem a um escritor moçambicano, por exemplo, sobretudo por um olhar outside. Salvo o erro mas parece vincado, entre os “novos escritores”, o anseio de ser lido numa perspectiva universal e não nativista. Contudo, essa peleja parece querer sustentar-se naquele esteticismo já vencido contrariando o que Marc Rombault apud (op. cit.) acredita ser um dos desígnios de toda a grande literatura: ser o “barómetro da consciência moral dum povo”.

[1] Citação extraída da carta de Lévi-Strauss em reacção à “Morfologia do conto maravilhoso” de Vladimir Propp.

[2] TRIGO, Salvato. Ensaios de literatura comparada afro-luso-brasileira. Lisboa: Voga, 1986;

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