O País – A verdade como notícia

Dos festejos folclóricos em Matutuíne à fatalidade na baía do Espírito Santo…

“ O que Deus faz, o homem desfaz”, disse a Mariazinha numa tentativa de esfriar a hilariedade que provocara o esquecimento da “história da moça” a que se propusera a narrar.

“ Lembram-se do Xigubo xa Filipe? Dessa vez também trabalhámos aqui que nem umas escravas a bainhar capulanas, como foi da vez da história da santa Aurora”, recordou-se a mãe Dorothy. Viera-lhe à memória um outro evento, sucedido muitos meses antes do assassinato da Munhuana, que é como ficou conhecido o caso da irmã Aurora.

“ Quem pode esquecer aquilo? Aqui nesta terra acontece cada uma!…”, disse a Mariazinha entre dois suspiros.

Do auditório o Valgi era o único que desconhecia o episódio que, do mesmo modo que o da Munhuana, abalara as consciências e a tranquilidade dos habitantes dos subúrbios.

E eis aqui, pela boca da Mariazinha, para redimir-se da amnésia temporária, a narração das razões para a atribuição do nome Xigubo xa Filipe àquela capulana.

“ Como é uso e costume aqui nesta terra, o começo da época de canhu é marcado por festividades. O lugar central para essas celebrações é em marakwe , em Gwazamutine. Um dia vou contar a história de Gwazamutine. Só que nem toda a gente pode deslocar-se a Marracuene. Muitos preferem  cumprir os rituais em locais não muito distantes das suas comunidades. É o caso de Ka-Massaca, na Moamba; de Gwaxine, na Katembe, de Nkalanga, Salamanca e Porto Henrique. E muitos outros povoados espalhados por aí .

As celebrações de Gwaxine eram já tradicionais. Todos os anos tinham aí lugar rituais em que se prestavam homenagnes e tributos aos antepassados e se agradeciam as dádivas com eles agraciaram os vivos. Compareciam altas individualiades provenientes de regiões vizinhas, e até de alguns subúrbios de Lourenço Marques. Dentre os convidados destacava-se o grupo de xigubo de Filipe, assim chamado porque o seu capitão era um cidadão de nome Filipe que vivia no bairro Indígena. Ele era um ás naquela dança. Não havia ninguém que a executasse como o faziam os elementos daquele grupo. Era até convidado pelos chefes brancos da Administração do Concelho para se exibirem nas grandes festas da cidade ou quando chegasse à cidade algum membro importante do governo da Metrópole.

Depois das homenagens, encabeçadas pelo famoso curandeiro “Nengue Wa-Nsuna”, todos os agrupamentos exibiram as suas habilidades. Nem de longe, nem de perto aqueles poderiam chegar aos calcanhares do grupo do Filipe. Desta vez ele trouxera  na comitiva uma meia dúzia de crianças que dançaram que foi um regalo. Nesta modalidade ele era um campeão indiscutível. Uma vez mais, ganhou aquela competição de danças tradicionais com todo o merecimento e justiça.

Mas, há sempre um mas, alguém não digeriu bem a vitória do Filipe. Havia uns surdos murmúrios do caudilho do grupo de Gwaxene que, embora se excedesse em novos números, estava muito aquém dos níveis dos dançarinos do Filipe. Porque nestas coisas é como em tudo: quanto mais te destacares, mais convites vais receber das autoridades. E isso equivale a viagens e a dinheiro. O sucesso duns é dor dos outros. Sempre assim foi, e assim sempre será.

No fim daquela tarde as multidões começaram a dispersar. Só os que tinham bebido demasiado permaneceram espalhados no chão a dormir. Outros desapareceram nas matas à volta para, sabe Deus para quê!… Aqui, só para fazer uma pausa: vocês sabem a quantidade de escândalos que acontecem durante estes encontros para consumo de canhu? Pois fiquem a saber para terem mais cuidado. O canhu, está provado, estimula o corpo para o sexo. Dizem os assimilados que conhecem bem a Língua Portuguesa que é afro…afro… afro quê mesmo? Afridisíaco! Ah, é isso mesmo.

“ Hê-hê, tia Mariazinha! É bom saber isso e é pena que se produza canhu só uma vez por ano…e por pouco tempo!”, galhofou o Valgi. “Dessa eu não sabia”.

“Pois então ficas a saber. Nessas sessões escândalos nunca faltam. Conforme se diz e já se provou, o sumo de canhu tem o efeito de estimular a vontade para ter sexo. Alguns homens e mulheres quando já estão embriagados não querem outra coisa; metem-se aí pelos matos para continuar “a festa”. Diz-se até que estes actos são já parte das celebrações, são tolerados e esquecidos por todos.”

“Eu não vou nessa tradição, não posso aceitar isso da minha mulher, ela a deitar-se com outros homens e depois dizer: desculpa-me lá Hussene, foi por causa do canhu. Isso esquece, tia Mariazinha!”, o Valgi agita-se desconfortado, a pensar no que andará a esposa a fazer em Kariacó na sua ausência já prolongada.

“ Olha lá Mariazinha, contas a história do Filipe ou não?”, a mãe Dorothy a avivar a memória da colega, muito conhecida pela frequência nos lapsos da mesma.

“ Ah, sim. Então depois das celebrações os participantes começaram a dispersar. Cada família tomou o seu caminho. Os que viviam longe embarcaram nas camionetas e seguiram para os seus destinos. Todos iam a cantar, a comentar  sobre o sucesso do evento. O Filipe e a sua comitiva foram levados ao ancoradouro que era o terminal dos barcos que fazem as viagens Lourenço Marques-Katembe e vice-versa. Mas eis que, às tantas, o céu começa encher-se de nuvens. Nada fazia prever que fosse chover. O dia fora tão claro e quente que ninguém poderia imaginar que fosse terminar daquela maneira. Já se ouvia o som de trovoada que vinha lá dos lados de Changalane e aproximava-se da baía, talvez a caminho da cidade. E começou a chover a sério. Os céus encheram-se de relâmpagos, o mar embraveceu. A comitiva do Filipe embarcou nos catembeiros, ansiosa por chegar  à cidade o mais rápidamente possível. As ondas do mar cresceram de altura e chocavam com muito ruído umas contra as outras. Parecia que no fundo tinha xitukulu-mukumba. Os barquinhos em que aqueles viajavam pareciam de papel. Eram jogados para esquerda e para a direita, sem tomar direcção certa. As pessoas que estavam em terra no ancoradouro nada podiam fazer; limitavam-se a erguer as mãos sobre as cabeças, para manifestar receio por aquilo que poderia acontecer. E aconteceu o imprevisto daquela catástrofe. Uma onda gigante caiu sobre o barco que transportava o Filipe, a esposa e os seis acompanhantes, e submergiu-os nas águas da baía sem nenhuma possibilidade de salvação”.

“ E os outros barcos?”, perguntou o Valgi.

“ Embora com muita dificuldade os outros barquinhos chegaram a salvo à outra margem . Os que neles viajavam salvaram-se todos”.

“ Isso cheira-me a feitiço! Como é que o mau tempo foi logo escolher o Filipe e os principais dançarinos? Ná, alguma coisa houve!”, céptico, o Valgi via doutro ângulo a causa ou as causas da tragédia.

“ Claro, especulações sobres os motivos do acidente, ou quem o causou, correram em todo o subúrbio e mesmo aí fora nas localidades. Apontava-se o dedo ao chefe do grupo do Gwaxene, que rivalizava com o do Filipe.

“A inveja faz destas”, pronunciou-se uma jovem cliente que se juntara aos costureiros, a aguardar pela conclusão do embainhamento dumas capulanas de farda para o pedido de casamento duma prima chamada Rossana, a ter lugar no sábado  seguinte. E falava com conhecimento de causa. Durante os preparativos para aquela cerimónia tivera sérias confrontações com uma amiga, ou dita amiga, uma presunçosa, mentirosa e traiçoeira que, abespinhada por não ter sido escolhida para capitanear as cerimónias, andava a beliscar-lhe a reputação. Problemas de rivalidades que envolviam pretendentes e namorados. Viu naquela uma excelente oportunidade para demonstrar à rival que também tinha os seus recursos, e rapazes era o que menos lhe faltava, ora que essa!. Foi quase que por instinto que disse:

“ Senhor Valgi, se quiser participar no pedido da minha prima pode sentir-se convidado. É da maneira que fica a saber como se fazem as cerimónias de pedido de casamento cá entre nós”.

Valgi ergueu os olhos de surpresa e relanceou-os pelos das colegas. A Mariazinha encorajou  com um assentimento de cabeça. É como se dissesse: “aceita”.

Valgi suspirou. Deitou a vista à Mariazinha, de quem julgara adivinhar um aparente interesse em criar e aprofundar alguma amizade. Na sua apreciação masculina, ela era detentora duma figura que no geral poder-se-ia considerar atractiva, provida de sólidos “argumentos” físicos; “…embora muito distraída e já quarentona, não é pêra para se deitar fora!”, segredara aos seus botões naquela primeira avaliação, feita durante os primeiros contactos ali na loja.

“ Podes contar comigo. Estou cheio de curiosidade em saber como essas coisas se passam por cá”, deste modo Valgi anuiu ao convite da cliente.

O nome dela era Eva, ninfa de poisos inseguros, porém cheia de encantos e seduções.

 

Partilhe

RELACIONADAS

+ LIDAS

Siga nos