O País – A verdade como notícia

Da história da Maria Amélia

O filhinho da Alicinha ia completar seis meses de idade. Ela pensou que era já altura de mostrar o bebé aos familiares do falecido marido. Assim, propôs à Julia:

“Se tiveres tempo no Domingo poderias acompanhar-me à casa da minha cunhada Melita, a irmã mais nova do Martinho”.

“Não vejo problema, também preciso dum tempinho para descansar”, respondeu a prima, a descortinar uma oportuniadde para soltar os olhos dos panos e das agulhas da costura.

“Coitada, ela teve um problema tão grande que quase a levava a suicidar-se”, adiantou a Alicinha , a aguçar a curiosidade natural da prima.

“Heish!, nesta família do teu falecido marido só acontecem coisas estranhas. O que foi que aconteceu à tua cunhada?”, perguntou a Julia.

A Alicinha ajeitou o seio à boca do filho para amamentar, aconchegou-o melhor ao peito e desvendou os eventos principais que conduziram à desgraça em que vivia a cunhada Maria Amélia.

“Como disse, a Melita é a irmã mais nova do meu falecido. Uma mulher bonita, desejada por muitos homens, alguns até muito instruídos, de boas famílias. Embora não tenha estudado muito, era muito inteligente e conservada. Ia à missa e ajudava toda a gente. Quando chegou a vez de namorar rejeitou boas propostas de pedido. De tanto escolher foi cair nas mãos de um chingondo chamado Bernabé, vê lá só tu!, um nortenho que acabava de chegar a Lourenço Marques, depois de cumprir com a tropa. Nem sei onde se encontraram, mas a verdade é que nem demorou tanto e já estavam a namorar. Ele conseguiu alugar uma casinha de madeira e zinco ali na zona da Maria Caldeira, perto da cantina do Dias.

  Ela ia lá visitá-lo com muita frequência, sobretudo aos fins-de-semana. Conforme ela nos disse depois, o tal era agente da Pide-DGS e andava a fazer espionagem da população aqui nos bairros. Como sempre sucede com gente boa e honesta, ela foi enganada por ele e ficou de grávida. Toda a gente ficou de boca aberta. Nem dava para acreditar que uma moça tão recatada e ajuizada se deixasse cair nas garras daquele bandido. Ele nem quis responsabilizar-se por ela, nem pelas filhas gémeas que depois nasceram. O meu falecido é que teve que aturar tudo. Até chegou de brigar com o tal e até foi deixá-la lá em casa dele. Mas o tal nortenho mandou-a embora depois. E ela voltou para casa, cheia de arrependimento. Continuou a trabalhar e a sustentar as filhas o melhor que podia.

“ Quando as crianças completaram três anos ela achou por bem meter queixa no tribunal, para o sustento das miúdas. E conseguiu que ele fosse obrigado a pagar uma mensalidade. O homem andava furioso com ela e tudo fazia para fugir às suas obrigações de pai e às ordens do tribunal. Até que chegou aquele dia em que ela foi  exigir uma mensalidade que já andava atrasada. Ele vivia com uma moça chamada Sãozinha, filha de um assimilado do bairro Fajardo, toda vaidosa, alta, muito bonita., mas bem ordinária.

Quando a Melita lá chegou estavam os dois a matabichar. Era num Domingo e ela vinha da missa na Igreja da Missão de S. José. Mal sabia que aquele era o primeiro dia no inferno que passaria a ser a sua vida. Depois de pedir licença, ele mandou entrar. E começou aquela discussão em que ele a empurrou, chamou-lhe nomes feios…sua isto!..sua aquilo…Só visto! Então a nova mulher dele meteu-se no assunto. Brigaram e brigaram bem.

Então o tal Bernabé resolveu separá-las e sentar-se com elas para apaziguar. Aquela mulherzinha parecia afinal compreender a situação porque, conforme as palavras da própria Melita, aquela disse: “ Olha, mulher, nada tenho contra ti, vocês conheceram-se antes de mim, tiveram as tais filhas juntos, mas o que não admito é vires à minha casa num Domingo como este, perturbar o nosso descanso e exigir coisas que não deves. Como posso aceitar viver com essas miúdas se nem sou a mãe delas? Que mãe és tu que queres desambaraçar-te dos teus filhos e vir largá-los aqui diante duma estranha que eu sou? Tem juízo, mulher. Nunca vi uma mãe que quer abandonar os filhos, seja por que motivo for”. O caso é que a Melita não tinha razão. Já namoriscava por aí com um outro rapaz que lhe dizia que só poderia casar com ela se entregasse as filhas ao pai. A questão estava toda aí”.

“ E acho que o moço tinha a sua razão. Ninguém quer, nem gosta de ser obrigado a criar os filhos dos outros”, disse a Julia.

“ Se fosses tu o que farias, Julia? Isso é tudo muito complicado”.

“ Comigo seria assim: ou ficas comigo e com os meus filhos, ou nada! É pegar ou largar. Filhos meus não dou a ninguém”.

“ Isso nunca deu certo. Sempre há problemas entre o casal por causa de filhos doutros casamentos. Ainda vou-te contar muitas histórias acerca disso”, contrapôs a Alicinha.

“As duas mulheres não se entendiam. O Bernabé já nem sabia para que lado virar-se; se ficar a favor da mulher actual e perder as filhas, ou perder a mulher e ficar com as filhas; estava num beco sem saída.Um dilema na mente de um homem que queria assumir-se ao mesmo tempo um pai e esposo responsável. Tentou negociar uma solução: fazer as pazes e depois chegar-se a um acordo. Proposta rejeitada: ”…não entro em acordos com ninguém…se quiseres ficar com ela pois então fica…isso é um pretexto para conseguir uma entrada na nossa vida, porque terá de vir ver as crianças…e tudo vai recomeçar…comigo não vai dar!…”, era o ultimato da dona Sãozinha que assim virava o bico ao prego: “…o culpado maior desta barafunda, desta pouca-vergonha, és tu, sem tirar nem pôr! E para acabar com esta palhaçada quero esta mulher fora do meu quintal. E é já!”, a Sãozinha levantou-se do assento onde o marido a colocara. Agarrou a Melita pelos braços e começou a arrastá-la em direcção ao portão de saída. O marido interveio para tentar separá-las. Em vão, a São parecia ter cola nos braços. Uma barafunda dos diabos: trocaram bofetões e arranhões, e rasgaram-se as roupas. A vizinhança acorreu ao quintal e chegou a tempo de testemunhar aquele golpe fatal quando a Sãozinha enterrou os dentes no rosto da Melita e arrancou-lhe um grande pedaço do lábio superior. Cuspiu-o e esmagou-o com os pés, irremediavelmente conspurcado e contaminado,  triunfante e orgulhosa do seu acto.

De nada valeram as operações e os cuidados dos médicos no Hospital Miguel Bombarda. Fizeram enxertos e outras coisas mais, mas de nada valeram à Melita. Ela hoje anda sempre com um lenço no rosto, para cobrir os dentes que estão à mostra, desprotegidos pela cortina do lábio amputado”.

“ Essa mulher foi muito cruel. Se eu fosse a Melita matava essa dona São”, disse a Julia, enfurecida.

“ Mete muita pena ver assim uma mulher que já foi bonita, cheia de amigas e favorecida pelos homens. Hoje é uma sombra dela própria, a fugir de tudo e de todos, todos a evitarem a sua companhia como se ela fosse uma leprosa. Mete mesmo pena”.

“ O que foi feito das filhas?”, quis elucidar-se a Julia.

“ Sabes duma coisa? Nesta vida há pessoas com muita sorte: a tal São não pode conceber filhos, mas ganhou as gémeas. Agora todos encontram-se a viver no norte, em Vila Cabral, que é a terra-natal do Bernabé. A minha cunhada vive de vender peixe no bazar do Diamantino. Se lá fores e vires uma mulher que usa uma máscara de lenço na cara ficas a saber que é a minha cunhada, a Maria Amélia.

 

 

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